PRIMEIRO CAPÍTULO


Capa e projeto gráfico de Romualdo Lisboa


A INVENÇÃO DE SANTA CRUZ
Pawlo Cidade

CAPÍTULO 1 (parcial)



1

 

 

NÃO TENHO DÚVIDAS de que Mãe Tainha, a mais velha habitante de Santa Cruz, a mulher destinada a virar peixe, seja a única a se lembrar do pesado e repentino aguaceiro que desabou sobre o povoado de Santa Cruz. A sua memória vívida preserva os pormenores do fenômeno meteorológico excepcional que assolou nosso povoado em 1914. Um aguaceiro imponente que parece ter tecido as páginas de sua própria epopeia bíblica. 

Durante três dias ininterruptos, as águas caíram do céu com uma força impetuosa, transformando rios em verdadeiras artérias de um dilúvio inesperado. A comunidade, abraçada pela incerteza, viu-se às voltas com uma angústia crescente e um temor pelo desconhecido que enchia cada coração de um apelo quase esquecido pela divindade.

 

Por minha culpa, minha tão grande culpa!

 

No clímax da nossa vulnerabilidade coletiva, em meio a lágrimas e súplicas fervorosas, uma procissão de penitência rasgou as ruas de Santa Cruz. Homens, mulheres e crianças uniram-se num clamor que ecoou além das nuvens escuras – uma invocação pelo fim da tempestade que testemunhava a sua fé inabalável. 

 

Deus todo-poderoso, tenha compaixão de nós!

Senhor, escutai a nossa prece.

 

E aqui repousa o cerne do nosso espanto e admiração: conforme os relatos da estimada Mãe Tainha, naquele mesmo instante, as rajadas silenciaram, o céu aplacou sua fúria e as águas, como atendendo a um comando superior, retrocederam, abandonando somente a marca de sua presença e a certeza de que o espírito dessa gente é mais inquebrantável do que as mais violentas intempéries. 

 

Graças te damos, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra!

 

No povoado dos absurdos, presenciamos um milagre. Esse lugar repleto de indivíduos de alta estirpe, que diz possuir valores firmados na verdade, personalidade, hospitalidade e autenticidade — Senhor, tende piedade deles! —, paradoxalmente, o absurdo se faz cotidiano quando alguém é capaz de gastar dois reais apenas para evitar que o outro ganhe um. É o local onde nem todo filho de peixe peixinho é, onde as lições de hereditariedade não se aplicam à índole e ao caráter. 

Nesse espaço ímpar, descobrimos que as más influências estão por toda parte, quase palpáveis, como o odor forte do mercado de peixe da Central de Abastecimento, ao qual, inacreditavelmente, todos vão se acostumando. É o ar que respiramos, uma realidade que imperceptivelmente se entranha.

E é no seio desse povoado que cada um de nós acaba por se tornar o "peixe" de alguém, numa teia de interdependências e influências mútuas, onde cada ação e decisão reverbera através do coletivo. Às vezes somos a presa, em outros momentos, somos o predador, mas sempre fazemos parte desse ecossistema humano carregado de contradições e encantos. Aqui no povoado dos absurdos, cada dia é uma nova revelação de que a humanidade é feita de nuances e a vida é o maior milagre de todos.

Perdoem esta velha a caminho de sua quingentésima data de nascimento. Quinhentos anos não são quinhentos dias. É, de fato, uma idade considerável para quem, generosamente, ainda me chama de princesinhaPrincesinha do Sul. Digamos que, depois de ter passado por dolorosos aguaceiros — embora ainda viva a turbulência dos tempos presentes —, finalmente consigo respirar um pouco melhor. Sou fruto, a bem da verdade, da ausência de planejamento. O emaranhado, quase labirinto delineado das minhas ruas e praças, demonstra que a constituição do povoado, em sua beleza crescente, por mais que se tenham aconselhado, não correspondeu a um plano de urbanização. Cada um fez como cria que deveria ser feito. Bastava olhar do mar, à chegada da barra, para se constatar o aspecto feio, disforme, antiestético do arrabalde do Alto da Vitória, nas suas edificações sem alinhamento, formando vielas tortuosas; as suas casinholas de palha, integrando um conjunto desarmonioso.

Fui invadida por burareiros, oportunistas, bandidos, caxixeiros, falsos moralistas, déspotas e por nove indivíduos que se diziam de nacionalidade americana, inglesa e canadense, inculcando-se artistas dum circo. Tal qual meu primeiro mandatário, o capitão-mor Francisco Mero, de corpo comprido, cabeça larga, acaçapada, e olhos baixos, tipo peixe-morto, que tentou administrar meu território a ferro e fogo, mas tinha medo de cobra e bradava por São Bento quando entrava na mata:

 

São Bento, pão quente,

Sacramento do altar

Toda cobra do caminho

Arrede qu’eu vou passar!

 

Chico Mero — peixe armau, estorvo! —, por fora muita farofa, por dentro mulambo só. Exterminou povos da mata, afugentou passarinhos, assombrou animais que nem monstros do rio. Vivia e reinava como um peixe na água

Chico Mero entrou em conflito com os seus vassalos. Desmatou campos inteiros. Plantou discórdia. Semeou guerra. É bem verdade que quando foi expulso — à força — enterrou por maldade — ou desagravo — uma cabeça de burro em uma rua tortuosa da vila, gritando aos quatro ventos que Santa Cruz teria, com sua partida, uma vida ordinária e difícil, incapaz de se defender e prosperar, bem como de conter o respeito dos nativos. 

E não é que um dia, quatrocentos e noventa anos depois, um certo Prefeito inventou de procurar a tal cabeça de burro, crendo ele que me livraria da maldição de Francisco Mero?

Foi uma história engraçada, porém, calamitosa. Deixamo-la para diante. 

Enfim, que culpa tenho se minhas ruas, becos, vielas e avenidas são estreitas e desordenadas desde os tempos imemoriais? Não tenho mais para onde crescer. A não ser para o alto. Invadir rios e praias foi uma prática de outrora. Mangues foram soterrados na calada da noite, casas de lonas e madeira construídas, semelhantes àquelas de madeira rasgada a dois passos, acobertadas de folhas de coqueiro e sapé. Depois vieram as casas de tijolinhos e telhas de amianto, as casas de laje, de telhas de cerâmica e alvenarias e por fim as grandes mansões, transformando bairros pobres em bairros ricos. Os abastados economicamente expulsaram os nativos para outras periferias como faziam os macacos quando isolavam os doentes.

Na época, a intendência não fiscalizava, fingia-se de cega, alegava não ter braços nem pernas para coibir os usurpadores. Se não fossem os grupos ambientais, os institutos defensores da terra, os protetores das matas, como o vereador Antônio Bagre Bandeira e a ambientalista Maria Arenque, meus rios seriam esgotos, minhas praias, lama; e minhas árvores: pintura de aquarelas em telas sem vida de crianças ou desenhos esquecidos em varais pobres de algum canto de uma sala de aula. Ó vida! Ó morte! Triste fim de uma cidade perdida. Quisera eu ter um Policarpo Quaresma nas minhas ruas, defendendo as minhas terras.

Às vezes me sinto um peixe fora d’água

Por certo, quiçá fosse melhor ser muda como um peixe

 

Minha história é uma história de lutas e guerras. Guerras com os holandeses, felizmente rechaçados pelos santa-cruzenses através das fortalezas que foram erguidas. Uma na boca da barra, sobre os recifes do Morro do Trabuco; e outra sobre os farelhões do Unhão. Mas a vitória só veio no morro onde foi construída a Capela de Nossa Senhora da Vitória, daí o nome do alto.

Guerra com portugueses, franceses, coronéis, jagunços. Sou o solo de uma civilização que um dia foi uma das mais prósperas deste país. Gerei riqueza para construir casarões, palácios, estradas, rodovias, portos, aeroportos e igrejas. Enriqueci pessoas e grupos. Distritos foram emancipados, novos bairros fundados. Mas, infelizmente, hoje muitos do que aqui vivem entre nós desconhecem nossa história. Em nome do progresso e do desenvolvimento, enlutaram nosso patrimônio histórico, derrubaram casas, fachadas e construções memoráveis. Alguém se lembra do Palacete de Inverno do Coronel Manoel Misael Carpa? Ou do Chafariz iluminado da praça Coronel Oto Pessoa, que chorava nos dias quentes de Verão e cantava nas manhãs alegres da Primavera? E do Castelinho de Vitrais da subida da ladeira da Santa Casa de Misericórdia, testemunha do meu crescimento desordenado, das passeatas estudantis que fechavam a Rua da Inconfidência? E do trágico incêndio do Cine Teatro Santa Cruz? Ou ainda dos famosos Leões de Mármore da Praça Dom Jerônimo Agulha, frente à Catedral de São Sebastião, o primeiro dos meus três padroeiros, cuja base era banhada pelas marés de março, que foram expulsas com a construção do porto? 

Eu bem podia dormir descansada com São Sebastião cuidando do lado Leste, Nossa Senhora das Vitórias guardando o lado Sul e São Jorge vigiando o lado Norte e a retaguarda. Mas quem disse que eles se entendiam? Cada um puxava os fiéis para um lado e a confusão se formava nas quermesses, nas novenas e nas procissões. Culpa do padre Francisco Royal Gramma. 

A praça Dom Jerônimo Agulha era a mesma praça onde se reuniam todas as noites: Piau, Aracu-boca-pra-cima, Vermelha, Canivete, Tuvira e Papa-areia, as pessoas em situação de rua mais ilustres das minhas vielas e dos meus segredos. Os que resistiram à grande peste da demência.

Durante anos, a praça Dom Jerônimo Agulha foi testemunha de inúmeros acontecimentos. Entre eles, o dia em que os irmãos Pristella foram convencidos, pelo Secretário do Turismo, que melhor seria remover a grande estátua do Redentor, instalada na Praia do Cristo, em 1942, e levar em pedaços para o Morro do Trabuco, onde teria uma visão privilegiada, de frente para o povoado.

A ideia estapafúrdia, embora tivesse quem a defendesse, fez com que o calcetamento de pedras portuguesas que cobriu a praça por muitos anos estremecesse, formando um mosaico curioso embaixo da grande amendoeira das maritacas que atraía a atenção dos visitantes e turistas e povoava a mente criativa de Honório Viola, o guia das histórias convenientes e igualmente cabeludas de Santa Cruz. Se a praça não tivesse sido reformada e as pedras portuguesas extraídas, era possível ver o mosaico com cara de riso no pé da amendoeira. Foi também debaixo dessa amendoeira que o empresário Botafogo Cascudo, o maior flamenguista de Santa Cruz, recebeu a notícia de que estava falido e teve um enfarte. 

— Estão tentando apagar a nossa história — berrou Alfredinho Jaraqui, contador de causos, conhecedor das raízes familiares de Santa Cruz, ao saber da ideia absurda do Secretário do Turismo. 

Alfredinho Jaraqui também era contra a transposição da estátua do Cristo para o outro lado do rio. O mesmo Alfredinho Jaraqui que, quando era menino, passava longe do Beco das Borboletas. Pobre beco das minhas meninas solitárias, abandonadas, esquecidas e tristes, comandadas por Raimunda Espadinha, a mais velha, estrábica, nariz pontudo e muda, mas que falava pelos cotovelos, gesticulando mais rápido que um par de hélices de ventilador e que fazia valer, no exercício da profissão, a máxima: Todo sirve, todo vale. A macaxeira que amava um arranca-rabo quando chamavam ela de olho trocado.

No entanto, adolescente, Alfredinho Jaraqui pernoitou por aquelas bandas em noites sem-fim, sem que sua mãe soubesse, nos braços de Raimunda Espadinha, a mulher da perdição (ou do prazer!) de quase metade dos adolescentes de Santa Cruz. 

No dia em que Raimunda Espadinha tomou formicida tatu, sem que se soubesse o motivo, e partiu montada num porco alado, muita gente chorou às escondidas. A velha prostituta confessou a padre Augusto Góbio que gostaria de ser recebida no céu pela Santa Margarida de Cortona, mas só aceitava ir se fosse montada no Coronel Jalmiro Tilápia e este transformado em porco alado. O padre até que tentou extrair os motivos do desejo esquisito, mas Raimunda Espadinha disse que não revelaria as razões. E nunca os revelou. 

Todavia, quando criança, Alfredinho Jaraqui gostava mesmo de tirar goiaba no Buraco da Gia, onde as mulheres lavavam roupa nos minadouros, com os amigos que moravam perto da Ilha das Cobras, praça central do povoado, onde se erigiu, tempos depois, o Monumento à Civilização do Cacau, o Cabrucão. Seus amigos da Ilha das Cobras eram primos de uns meninos maluvidos da rua Clavinhos de baixo, inimigos mortais dos garotos da rua Clavinhos de cima. Um bando de sabão de mula, ruins que nem a peste, que usavam alecrim-de-cachorro (excremento de cão) como munição contra os maluvidos da Clavinhos de baixo. As ruas, paralelas, estavam nos fundos do Palacete Cheiro-verde, de propriedade do Coronel Jalmiro Tilápia, homem temido e respeitado, mais pelos seus encantos pessoais que ideológicos. 

Houve um tempo em que os coronéis protegiam seus agregados, dispensavam favores, tirava-os da cadeia, dava-lhes terras, cuidava deles quando estavam doentes. Em troca exigia fidelidade, serviços, participação nos grupos armados e permanência em suas terras. 

— De hoje em diante, vosmicê se reporta a mim. Entendeu, cabra?

— Sim senhor, coroné. Quem manda aqui é o senhor.

Se o cabra decidisse partirseguir outro rumo ou traísse o coronelfim de estrada. Caminho sem volta. Triste desígnio.  

 

E por falar em caminho sem retorno, contaram a Peixe Sem Volta, um taxista que fazia ponto no aeroporto Jorge Piau Três-pintas, que havia um túnel secreto que ligava o convento das freiras ao Morro do Urubu, por onde escaparam — com a ajuda das carmelitas — perseguidos políticos e padres subversivos durante a ditadura militar. Peixe Sem Volta repetiu essa história até a sua morte, mas ninguém nunca viu a tal passagem. Exceto José Lourival Truta, o fotógrafo.

— A abertura só aparecia na maré baixa. Mas, quando construíram o iate club, soterraram — afirmava o motorista de táxi, convicto, a um passageiro em sua derradeira e única viagem diária no aeroporto.

E a Mulher de Branco, que aparecia na Fonte da cruz em noite de lua cheia? A fonte não existia mais, mas o Beco de João Rato ainda é passagem obrigatória para quem deseja cortar caminho e chegar mais rápido à Rua da Linha. A rua do trem. 

Em tempos áureos, a chegada da locomotiva se tornou um dos maiores acontecimentos de Santa Cruz. Ela partia todas as manhãs, às seis horas, pontualmente, para Sambaituba, Ribeira das Pedras, Urucutuca, Almada, Rosário, Lava-Pés, Baleia, Aritaguá, Barbosa, Provisão. O trem que se foi e só ficou a Maria Fumaça de recordação, como peça de museu, na praça que também tinha nome de coronel. 

A notícia da aparição da Mulher de Branco causou medo aos homens porque se dizia que se tratava de uma noiva abandonada no altar à procura do seu noivo. Aquele que ela encontrasse no seu caminho estaria condenado ao casamento eterno, com direito a flores, epitáfio e túmulo no disputado espaço do Cemitério da Vitória, onde também foi vista.

— Se nunca mais deu o ar de sua graça, é porque deve ter encontrado o noivo na Rua dos Portões.

Quem disse isso foi Leandro Barrigudinho — que veio criança do povoado de Deus Dará, na boleia de um caminhão. O engole-tudo, o bêbado, trôpego, ébrio, temulento, com uma piela daquelas, no Sovaco da Cachorra, em São João da Barra do Pontal, e depois repetiu, na semana seguinte, de pés juntos, no Tabuleiro da Baiana, uma antiga casa noturna da Barra Velhana Zona Norte da cidade.

Pior do que confrontar a Mulher de Branco seria ouvir o assobio melancólico do Tibarané, uma ave noturna que cantava triste e se transformava em um velho de rosto derretido. Não havia quem não chorasse ouvindo seu lamento macabro e persistente. Um dia, sem quê nem para quê, como muitas aleivosias e pessoas em Santa Cruz, o Tibarané desapareceu.

 

Durante muitas primaveras, o povo elegeu administradores preocupados com seus interesses pessoais e que, quase sempre, responderam processos por mau uso da máquina pública. O povo vivia reclamando nos programas de rádio e protocolava denúncias no Ministério Público pela falta de recolhimento do lixo, ausência da iluminação pública, deficiência de pavimentação das ruas, e comparecia, em peso, nas unidades de defesa do consumidor para reclamar do café que estava gelado na cafeteria do shopping e pela falta de ondas na Praia do Cristo. E ainda teve um youtuber que registrou um boletim de ocorrência na delegacia de polícia porque não conseguiu fazer com que os animais de um canil ficassem em silêncio durante uma gravação. 

 

Coisas de Santa Cruz!

 

(...)


A Invenção de Santa Cruz

by Pawlo Cidade

Editora Teatro Popular de Ilhéus

2024.  pp.216

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