quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

DEGUSTAÇÃO LITERÁRIA

Parábola do Juiz iníquo – Site Espírita


O JUIZ INÍQUO

Pawlo Cidade

Dona Imani de Jesus procurou doutor Joaquim Ribeiro, o juiz de paz da província, o homem mais arbitrário de Vila Bela. O homem tinha influência entre a maioria dos cidadãos do lugar; era o mais temido pelo corpo policial e capaz de interferir no processo político do estado. Contava com uma relação extensa entre os antigos senhores de engenho, influenciava os cargos políticos da Câmara de Vereadores e a grande maioria das escravarias, embora estas tivessem sido abolidas quatorze anos antes. 

Doutor Joaquim Ribeiro orgulhava-se de pertencer à “aristocracia da terra”. Um ateu convicto que detinha a fama de justiceiro contra os menos afortunados. Eleito por fazendeiros e latifundiários para atender aos interesses individuais e às famílias destes, dizia que legislava pela e para a fidalguia. Ai de quem o desafiasse maculando seus princípios, deturpando seus ideais. Bacharel de formação, concluiu os estudos pela Faculdade de Direito de São Paulo, mas continuava tocando os negócios do pai na fazenda de café. Sonhava ser Ministro do Supremo Tribunal Federal naqueles anos iniciais da República. Com a tinta rigorosa com a qual decidia suas sentenças, logo-logo sua fama se espalharia pelos quatro cantos do país e seu desejo não tardaria a se realizar. Corria entre os magistrados de paz na capital federal, onde o recém-criado Tribunal do Júri da Comarca de Vila Bela tornara-se modelo de justiça no país. 

Dona Imani de Jesus não deu ouvidos ao que disseram do doutor Joaquim Ribeiro. Nem sequer lhe passou pela cabeça que ele podia encarcerá-la, unicamente pelo fato de lhe dirigir a palavra. Não deixaram que ela entrasse no Tribunal, nem concederam nenhuma audiência com o dito juiz. Ela não recuou. Nem tampouco se deixou vencer pelas barreiras que lhe impuseram. Descobriu o endereço do juiz com a ajuda de alguns poucos amigos. Caminhou três léguas até sua residência e aguardou, pacientemente, a saída do doutor Joaquim Ribeiro de casa para o trabalho. Quando ele pôs os pés na calçada, se aproximou por trás dizendo: 

- Doutor, faz justiça com meu marido, pelo amor de Deus! 

O juiz continuou andando, sem dar nenhuma atenção ao apelo. Não olhou para a retaguarda, apenas a ignorou. 

No dia seguinte, bem cedo, lá estava ela novamente. Ao vê-lo sair, correu ao seu encontro e repetiu a solicitação. O juiz pensou que se tratasse de uma louca e a ameaçou. Depois, acelerou os passos e não respondeu nada outra vez. 

Quatro dias depois, já prevendo o aparecimento da mulher, o magistrado adiantou as passadas, enquanto ela, amiúde, implorava pela inocência do marido, desejosa de ver sua causa julgada honestamente. O juiz de paz estacou. Era uma figura pesada e sem elegância, de cara amarrada, que relanceava de quando em quando para dona Imani, por baixo daquelas sobrancelhas volumosas. Ele aspirou ruidosamente pelo nariz, como se quisesse adverti-la. A mulher estava a quatro passos atrás, desolada. Não disse nada e foi embora.

No décimo quinto dia, ao vê-la no portão, chamou os empregados e ordenou que a levassem dali. Seus gritos clamavam por misericórdia e atenção. Tudo que ela queria era apenas um minuto para que ele pudesse resolver seu problema. Na cidade, todos já sabiam da mulher do prisioneiro que fora preso sem julgamento e os cidadãos vilabelenses, mais condoídos, já começavam a falar de sua frieza e absoluta falta de compaixão. Foi, pouco a pouco, perdendo a popularidade. Já não gozava de tanto prestígio na sociedade. Poucos o cumprimentavam na rua. Os cochichos se estendiam e, cedo ou tarde, chegariam na capital. Incomodado com o falatório, inclusive de opositores na Câmara Municipal, e preocupado com a próxima eleição, o juiz iníquo, pensando em si mesmo e querendo se livrar daquela mulher, resolveu atendê-la. Ouviu o pedido de dona Imani, ali mesmo, no meio da rua e prometeu julgar a causa de Virgílio de Jesus. 

O processo foi posto, Virgílio de Jesus foi a julgamento. Mas o juiz o considerou culpado pelo sumiço das joias da família do mercador. Doutor Joaquim Ribeiro condenou o pobre homem a nove anos e nove meses de prisão. No julgamento, a acusação apresentou provas de que Virgílio de Jesus sabia do desaparecimento da mercadoria e, indiretamente, também seria o responsável pela morte de Malquias Amzalag. Afinal, quando o joalheiro chegou ao seu estabelecimento e viu que havia sido roubado, se apavorou e atravessou a Avenida Central entontecido, vindo a ser atropelado e morto.

No período em que passou na prisão, desenvolveu habilidades de um artífice. O talento se revelou no dia em que observou um menino brincando com o barro, no pátio de banho de sol dos detentos, num dia nublado de domingo, o dia oficial das visitas. A criança havia viajado com o pai de muito longe, de uma região chamada Ribeira dos Campos, perto da cidade de Caruaru, para visitar e conhecer o tio preso. Virgílio se aproximou da família e fez amizade com o pai da criança e com o tio. Ficou encantado com a peça que o menino criava, manipulando o barro com jeito. 

- Bonito, seu bonequinho... disse, tentando puxar conversa com o garoto.

- Não é um bonequinho, é um boi. Rebateu o menino, enquanto lapidava os chifres do animal com a água da poça da chuva. 

O pai, orgulhoso, entrou na conversa:

- Esse menino sabe é coisa. Outro dia ele fez um cavalo marinho igualzinho aos do mar. Esboçou um largo sorriso. Quando crescer vai ajudar a mãe a fazer panelas para vender na feira. E antes mesmo que Virgílio fizesse qualquer outra pergunta acrescentou:

- O nome dele é Vitalino! Vitalino Pereira dos Santos. E a criança continuou trabalhando no boizinho.

Um tempo depois, resolveu mexer no barro, durante o período em que ele e os companheiros tomavam banho de sol. Com dificuldade, fez um cavalo, depois um defunto na rede sendo carregado pelos amigos. Pouco a pouco foi se aperfeiçoando. Em menos de um ano, os detentos o apelidaram de “homem do barro”. Dois anos depois, alguns carcereiros traziam argila de suas casas para que Virgílio fizesse presépios e cenas do cotidiano, como homens montados a cavalo, animais ferozes, peixes e insetos. O trabalho foi ficando tão bom que os companheiros de cela cotizavam para comprar tinta para colorir as pequenas esculturas. Em contrapartida, Virgílio lhes retribuía com suas criações. No terceiro ano, já dominando por inteiro o novo ofício, o subdelegado o batizou de “Mestre Virgílio”, pois, para fazer as obras que ele fazia, só mesmo um mestre de nascença. 

Quando saiu da prisão, mudou com a família para o interior. Na bagagem, apenas um colchão de capim, algumas panelas de barro, lençóis e uma botija, presente de casamento de seu avô. Durante cinquenta anos, Virgílio de Jesus achou que havia perdido o mapa. Por diversas vezes tentou convencer a esposa do tesouro escondido. Ela o proibiu de falar naquele assunto enquanto viva estivesse lembrando-lhe sempre do tormento que ambos passaram. Entretanto, sem o mapa quem acreditaria nele? Sem o mapa o tesouro continuaria sendo uma lenda urbana, uma desculpa esfarrapada de um alforriado que, segundo o júri, roubou uma joalheria e matou o dono.

Agora estava só. Os filhos se casaram e voltaram para a capital. Dona Imani morrera de tuberculose sobre o sovado colchão de capim. Por orientação do pessoal da saúde, todos os objetos que tivessem tido contato com a doente deveriam ser destruídos, se possível queimados. Carregou o colchão com dificuldade até o quintal. Pegou uma faca grande para rasgar o colchão e retirar parte do capim afim de facilitar a queima. De súbito, ao cortar o coxim basteado, caiu um pequeno envelope, amarelado pelo tempo, do interior do colchão. Dentro do envelope, dobrado cuidadosamente em quatro partes, lá estava ele, o maldito mapa do tesouro de Malquias Amzalag, o mercador.




(Trecho do livro, O povoado das onze mil virgens, 2019, publicado pela Editora Teatro Popular de Ilhéus. "O juiz iníquo"foi inspirado numa parábola de Lucas 18:1-18).

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