sexta-feira, 28 de maio de 2021

MEMÓRIA

Centro Social Urbano - 1976-2021. Na foto, ruínas de um dos módulos onde ocorriam as oficinas e os cursos promovidos pela entidade.


CSU*
Pawlo Cidade


Você conheceu o CSU? Você sabia que o Centro Social Urbano – CSU, foi um dos maiores centros de convivência comunitária de Ilhéus? Pois é, hoje eu vou falar dele. 

Eu tinha 8 anos de idade quando o Centro Social Urbano – CSU, foi inaugurado no bairro da Barra, em 15 de setembro de 1976. Ao redor do CSU havia apenas pés de manga, muito mato e um extenso manguezal. Depois, veio a invasão que se juntou aos primeiros moradores do lugar: Seu Eurico com dona Mocinha, Seu Vavá com dona Maria, Seu Derneval com dona Isabel, Seu Clodoaldo com dona Pilú, Seu Zumar com dona Zenilda, Seu Ermiro e dona Tomázia, Seu Getúlio e dona Marita, meus pais. Nós chegamos cinco anos depois, em 1981.

Os Centros Sociais Urbanos foram criados na Bahia, pelo ex-governador Roberto Santos, com o objetivo de regular a vida dos trabalhadores no uso de seu tempo livre com atividades voltadas para a educação, arte, esporte, inclusão digital, qualificação profissional, educação infantil, apoio a grupos de convivência, os cuidados com a saúde e criar um vínculo com a comunidade. E conseguiu. 

O CSU não caiu na Barra de paraquedas. Houve toda uma caracterização da área que reuniu todos os elementos comunitários, bares, terreiros, igrejas, escolas e a população por faixa etária. O equipamento trouxe a população para perto da instituição. As festas de São João, os campeonatos esportivos, as comemorações de fim de ano, sempre contavam com a arrumação e a participação da comunidade do entorno. Todos se sentiam pertencentes do CSU: dona Neuza, Zezé, Bala, Borges, Walmir, Barbudo, Raildo, dona Tereza, Seu João, Jason, Gentil. Muitos já se foram, mas alguns ainda são a memória viva daquele espaço de lazer e convivência. 

Houve uma época que o CSU ficou tão forte e tão conhecido que ele acabou virando nome de bairro. “Você mora onde? No CSU!” “Qual é a rua que você mora?” Eu dizia: “Rua Centro Social Urbano”. E está assim até hoje nos Correios, embora o nome da principal rua tenha sido rebatizado há dois anos de “Rua Djan Lima Silva”, em homenagem ao produtor musical “Geninho”, que morou na entrada da rua, ao lado de onde foi construída uma quadra de esportes, onde, outrora, funcionou durante muitos anos uma serraria.

Foi no CSU que eu e mais quatro companheiros fundamos o primeiro clube de correspondência da Bahia, a Friendship Marvel Brasileira. Foi lá também que aprendemos a jogar futebol com o professor Renato e o professor Fred; a treinar volley com Odilon, a dançar quadrilha junina com Sales; a aprender postura, bons modos e português instrumental com o professor Maciel. Participamos de cursos e oficinas de artesanato, de pintura em tecido, de desenho, bordado a mão, bordado à máquina, tapeçaria, arte culinária, cozinha básica, primeiros socorros, datilografia com a professora Ludmila e produção de sabão em barra.

Havia também aulas de manicure, pedicure, corte e costura, dança, música, teatro. E as crianças brincavam de baleado, pega-pega, amarelinha e estafetas com monitores de jogos e recreação. Ensaiei peças de teatro, aprendi kung fu com Edilson, pintei cenários, e fiz até curso de pedreiro com mestre Antônio, que hoje é conhecido como Raul, o profeta, que anda de bicicleta para cima e para baixo no centro da cidade.

Foi no CSU também que participamos de vários torneios esportivos, gincanas, projetos de jardinagem e horticultura. E havia ainda um trabalho de acolhimento de idosos, de menores em situação de vulnerabilidade social, apoio a gestantes e recém-nascidos e um programa de alimentação familiar, palestras sobre gravidez na adolescência, doenças sexualmente transmissíveis, direitos civis. As portas do CSU sempre foram abertas para a comunidade. Até um grupo de escoteiros, coordenado por Jessé e grupos de capoeira desenvolveram suas atividades no CSU. 


Módulo onde funcionava o posto de saúde. Foto de Eli Santos


Frequentávamos ainda a biblioteca pública comunitária, participávamos de concursos e torneios, representando Ilhéus em várias outras cidades que também tinham CSU’s, como Jaguaquara, Feira de Santana, Juazeiro, Alagoinhas, Paulo Afonso, Santo Antonio de Jesus, Valença, Vitória da Conquista, Serrinha, Senhor do Bonfim, Teixeira de Freitas, Cruz das Almas, Lauro de Freitas, Itapetinga, Guanambi, Coaraci e Caetité. 

O CSU era o melhor lugar para namorar, se divertir e, sobretudo, fazer amigos. Amigos que se foram como Dai e Jorge Motor; Liquinha e Linho; Drico, Tico e Haroldo. Amigos e amigas que fizeram parte da turma daquela rua, como Nívea, Lívia, Lizete, Diu, Eliene, Luciene, Cássia, Célia, Alda, Nai, Tina, Paulinha, Quinho, Albene, Ró, Celiene, Irene, Hamilton, Mara, Ninha, Du, David, Beto, Jorge, Jean, Marcos Cabeção, Negão, Nego Veio, Tita, Sapecado, Rubens, Ivete, e tantos outros.

Mas o governo abandonou o CSU. Ninguém ligava mais para as paredes, os telhados, portas, janelas, o piso de cada um daqueles módulos. O CSU virou apenas um cabide de emprego. A estrutura foi se deteriorando, caindo, morrendo. A única unidade escolar com jardim de infância da Rede Estadual da época foi desativada anos depois, os cursos foram extintos, o campo de futebol abandonado e a quadra de esportes depredada. Lembro ainda que eu e Quinho pintamos a quadra, durante uma reforma. Éramos dois adolescentes tirados a letristas, que sabiam desenhar, e o engenheiro encarregado nos contratou. Ganhamos um bom dinheiro e nos sentimos orgulhosos por ter contribuído com aquele espaço que era nosso também.

O CSU viveu, entre apogeu e ruína, 44 anos. Agora, não existe mais. Em seu lugar será construído a Escola de Tempo Integral, um projeto arrojado do governo do estado que promete ser maior e melhor do que foi o CSU um dia. Espero que a placa fundamental traga um pouco desta memória e ao morador mais velho da comunidade lhe deem a honra de inaugurar a escola . Afinal, aquele foi um lugar que formou cidadãos, homens de caráter e pessoas que acreditavam em dias melhores para Ilhéus.

* Publicado originalmente no site e no programa de rádio O Tabueiro. Também pode ser lido este e outros artigos neste endereço: https://www.otabuleiro.com.br/column/csu 

quinta-feira, 27 de maio de 2021

ARTIGO



Eusínio Lavigne


O PREFEITO E O PROFESSOR
Pawlo Cidade

Eusínio Lavigne foi um político além do seu tempo. Soube, como nenhum outro, ver a Ilhéus do futuro. Pesquisadores e historiadores são unânimes em afirmar que prefeito, tal qual, Eusínio Lavigne, nunca mais tivemos. “Eusínio foi um mito, como ele, só em 100 anos”, dizia meu pai em seu senso comum ao falar de personalidades inigualáveis na arte, no esporte e na ciência, como Pelé, por exemplo. Se meu pai estivesse correto em sua profecia, prefeito semelhante a Eusínio Lavigne só seria eleito em 2036 e passaria a administrar a quincentenária Ilhéus já com seus 503 anos de fundação, em 2037, o que corresponderia aos cem anos a partir do último ano de governo de Eusínio Lavigne, em 1937.

Carlos Pereira Netto, em seu artigo “Eusínio Lavigne, um ilheuense”, publicado há alguns anos, chama o cacauicultor, jurista, político, escritor e jornalista de “mestre humanista”, ao tomar emprestado o título dado ao ex-prefeito de Ilhéus do historiador Nelson Werneck Sodré. E, por falar em Nelson, eis que Ilhéus teve a honra de possuir entre os mais ilustres professores da sua história, o futurista Nelson Schaun que já previa o aproveitamento do cacau na economia doméstica. Por sinal, este é o título do artigo que publicou em 8 de dezembro de 1940 onde chamava a atenção do desinteresse nacional pelo consumo do chocolate. “Só se pode compreender essa situação por dois fatores: ou a falta de conhecimento, ou a falta de iniciativa”.

Foi a confreira Maria Schaun quem me apresentou às crônicas de Nelson Schaun, com textos muito além de seu tempo, ao me presentear com o livro “Nelson Schaun Merece um livro”, publicado pela Editus, em 2001, e depois reeditado em edição especial na inauguração do Centro Estadual de Educação Profissional do Chocolate Nelson Schaun, em 2018.

Em tempos sombrios como o que vivemos, eis que as crônicas de Nelson se tornam mais atuais do que nunca. Em “Ao Povo de Ilhéus”, publicada em 10 de junho de 1947, o cronista faz uma grave denúncia contra a liberdade de imprensa ao saber que a sede do jornal O Momento foi barbaramente vandalizada. “Temporariamente estamos sofrendo um recuo no nosso processo democrático. Assim, é que assistimos a atos atentatórios à Constituição serem perpetrados. E, porque O Momento, como um órgão da imprensa popular, vinha denunciando esses crimes, provocou a sanha reacionária de alguns elementos do grupo fascista já referido, que invadiram e depredaram esse vibrante órgão da imprensa baiana, ferindo a liberdade de imprensa e praticando, assim, mais um atentado à Constituição. Contra esse ato de vandalismo, estão todos os democratas e toda a imprensa do país”.

Eusínio Lavigne e Nelson Schaun, foram, grandes intelectuais desta terra. Cabe-nos, sempre que a oportunidade se fizer presente, trazê-los à memória para que seus ensinamentos se perpetuem.

 Disponível também em: https://www.otabuleiro.com.br/column/o-prefeito-e-o-professor 

domingo, 23 de maio de 2021

PÍLULA ROMANESCA

            


A primeira coisa que disse quando voltou dos mortos foi: “Estou com sede! Quem pode me trazer um pouco d’água?” 

Ali sim foi uma balbúrdia! Foi gente saindo pela janela, pela porta, pela cozinha, pelo telhado e por onde mais tivesse passagem o povo fugia desesperado. A falecida, depois ressurreta, ao se dar conta que a causa de todo aquele deus-nos-acuda era ela, e que estava assentada dentro do seu próprio caixão, deu um pulo incrível, tal qual salto com vara, e foi parar no meio da rua. 

Deocleciano Pimenta não teve a mesma habilidade que Dona Janina, e nem pressa. Céo e Maria Marta, esta última com os olhos esbugalhados presos ao velho, o ajudaram a descer do caixão. Parecia que naquele momento toda a comunidade resolvera participar da brincadeira de estátua. Ninguém se mexeu. Todos foram tomados pelo susto e ficaram paralisados. Até os cachorros não tiravam os olhos do velho saindo de dentro do esquife. Deocleciano passou as mãos sobre o terno, retirando as últimas pétalas presas ao tecido, se agachou, pegou o chapéu e começou a descer a escadaria até a rua onde Pedro Parigot, também petrificado, acompanhou seus passos. Ao chegar ao último degrau, rente à calçada, foi que notou que ninguém mais se mexia. 

- O inferno é assim? Este silêncio desgraçado? É festa, meu povo! Deocleciano voltou! – gritou.O coral começou a cantar alegremente. Até coreografia as pessoas fizeram. As crianças pulavam e dançavam no chafariz. À revelia do seu presidente, o conselho inteiro fez festa. Francisco pulava que nem criança, Maria Amélia ria sem parar, de felicidade. Tonho Deveras não parava de xingar, carinhosamente, Deocleciano, dizendo que ele não passava de um velho filho da puta cagado e sortudo. Até Jacinto, acamado há anos, apareceu na praça trazendo seu próprio leito para abraçar o ressurreto. Jafé, arrependido de ter insinuado que Deocleciano deveria passar seus derradeiros dias em Sem Pasto, observou tudo de longe, ao lado da esposa. Mas era notória sua alegria.

sábado, 22 de maio de 2021

PÍLULA ROMANESCA


 

 - Neste mesmo dia o senhor assina o decreto do feriado da padroeira.   Prosseguiu.

- A ideia é boa. Mas o povo quer calçamento, saneamento, escola, posto de saúde funcionando...  Alertava o Prefeito.

- A gente sabe disso. Mas se tem pão e circo, em época de eleição, engana qualquer cidadão! Gargalhou. E acabou convencendo o chefe do executivo que, ao abrir as pernas por baixo da mesa, para se espreguiçar, chutou com o pé direito, involuntariamente, o joelho doente do Comprador. Demas – verdadeiro nome de batismo do Administrador do Povoado – fechou ligeiramente os olhos sentindo muita dor. O Prefeito se desculpou, mas já era tarde. O joelho queimava e pulsava ao mesmo tempo. Demas se levantou com dificuldade, respirando fundo. 

- Procura o doutor Bandeirante, urgente! Ele vai dar um jeito nesse negócio aí.  Orientou enquanto ordenava à secretária que entrasse o próximo. O Administrador balançou a cabeça concordando. Antes mesmo de o Comprador de Almas sair, a nova Diretora de Cultura entrou na sala. Os dois foram apresentados ligeiramente, sem muita cerimônia. 

- Demas, essa é a professora de piano do meu filho. Convidei ela para ser a Diretora de Cultura de Vila Bela, o que acha? Questionou o Prefeito. 

A nova Diretora de Cultura esboçou um sorriso em seus lábios, de cantos pendentes, já afinados, e estendeu a mão direita para ser cumprimentada. Demas, com o joelho sorumbático, só pensava agora como faria para descer aqueles mais de cento e cinquenta degraus do primeiro andar do gabinete do Prefeito, já que o elevador não funcionava há três semanas. Antes mesmo de retribuir a saudação, perguntou com a voz meio engasgada, num misto de dor e despeito:

- Você não é a esposa do Presidente da Câmara de Vereadores?

- Sim! Geraldinho é meu marido.  Novo sorriso. Desta vez mais longo e confiante.

- Parabéns! Retorquiu. 

quinta-feira, 20 de maio de 2021

DEGUSTAÇÃO DO PRIMEIRO CAPÍTULO DE "O TESOURO PERDIDO DAS TERRAS DO SEM FIM", 2a EDIÇÃO, REVISTA E AMPLIADA QUE SERÁ LANÇADO EM BREVE



O livro terá ilustrações de Jô Oliveira


CADA MACACO EM SEU GALHO

 

 

– Ele foi por ali! – gritou Gambá, o menino dos gases mais poderosos do mundo, e você vai saber o porquê disso daqui mais à frente, apontando na direção das árvores do pomar, na esperança de poder reparar a confusão que ele acabara de aprontar, quando resolveu abrir a gaiola e deixou escapar o pequeno mico-leão-da-cara-dourada, que passou pelo tratamento de ferimentos na cabeça e na pata esquerda, causados por uma arapuca, aquela armadilha de varinhas que mais parece uma pirâmide para apanhar pássaros, de um desses comerciantes ilegais de animais silvestres. – Rápido, Charlie! Abre logo a rede, senão ele vai escapar!

– Você não tinha nada que abrir a porta da gaiola, Gambá. Se ele fugir, nós estamos ferrados! – reclamava Charlie, seu amigo.

– Por que você não disse que o mico era do seu pai, Charlie? – perguntou Gambá.

– E de que adiantaria? Você mexe em tudo mesmo – respondeu o amigo.

– Não gosto de ver animais engaiolados. Me dá um nó no estômago, minha cabeça fica girando e eu começo logo a chorar. Já experimentou passar um dia inteirinho na prisão? – dizia Gambá tentando se justificar, e, ao mesmo tempo, lembrando da vez em que ficou preso, quando criança, dentro de um tambor, vou contar esta história depois.

– Ah, qual é, Gambá! Quanto exagero! – retorquiu Charlie.

– Ele saltou na goiabeira! Pega, pega, pega! – berrou Tati, a irmã de Charlie, que também se juntou a eles e saiu na perseguição do mico fujão, que àquela altura se escondia na copa das amendoeiras. O guincho do pequeno sagui se parecia com o som estridente daquelas maritacas verdes barulhentas que chegavam todas as tardes para repousar nos araticuns do quintal da sede da fazenda, e na praça do Teatro, no centro da cidade.

– Pare de gritar, menina. Desse jeito você vai acabar espantando o bicho! – reclamou Charlie já subindo numa árvore com uma rede de dormir e a ajuda de uma escada de madeira que eles utilizavam para subir nos coqueiros.

– Ele já está assustado, mano. Só a careta que Gambá fez pra ele é de matar um elefante! – riu.

– Juro que você me paga, Gambá. Quando tudo isso acabar, você vai ver só! – disse Charlie.

– Tudo eu, tudo eu! Abre logo a rede que ele vai saltar agora – Gambá foi logo atrás, segurando a outra ponta da rede que eles tentavam usar como arapuca.

– Se ele subir no pé de jaca, já era – Charlie esticou a rede por cima dos galhos. – Ui! Um espinho me furou.

– Deixa de moleza, cara. Se abaixa que eu passo por cima de você e prendo ele na rede. Vai! – encorajava Gambá.

– Não está vendo que eu estou abaixado? Não está vendo, não? Anda logo!

– Se vocês dois falassem menos, já tinham pegado o bicho. Falem baixo! – dizia a irmã.

– Fala baixo, você, Tati. Viu?! O bicho pulou de novo – reclamou o irmão. – A culpa foi sua, dentuça!

– Dentuça é sua avó! – vociferou Tati.

– Você xingou vó Ninha? Xinga de novo, vai, xinga! Xinga que ela vai ficar sabendo – dizia Charlie. O outro estava quase pegando o pequeno primata pela calda longa quando escapuliu de um galho. Charlie o agarrou pela perna. Tati gritou, achando que Gambá iria cair da amendoeira. O macaco, mais assustado que os meninos, tomou o caminho da mata, por entre a copa das árvores, guinchando num misto de medo e alegria.

– Ele foi para a jaqueira e está fugindo. Se ele entrar na mata, a gente não vai mais conseguir pegá-lo – Tati estava quase chorando.

– Ah, mas ele não vai mesmo! – Charlie saltou imitando o mico entre os galhos. Tamanha habilidade lembrou um daqueles trapezistas de circo, dançando sobre aquelas barras horizontais aéreas, deixando o público com um frio na espinha. Gambá e Tati ficaram boquiabertos.

– Quem você pensa que é, Charlie, Tarzan? – os olhos de Tati estavam esbugalhados ao ver as acrobacias circenses do irmão no alto das árvores. Ela não sabia se sorria maravilhada ou se tremia de medo só de pensar na possibilidade de uma queda do irmão daquela altura. Gambá, admirado, desceu escorregando pela amendoeira ralhando um sonoro pum!... Peeinnnnnnnnnnnnnn!

Não houve passarinho que sobrevoasse o local naquele instante, tamanho era o odor desagradável que ele acabara de exalar. “Meu Deus!” Tati cerrou os dentes para não soltar um palavrão e se afastou vermelha de raiva. “Que fedor!”.

O mico-leão-da-cara-dourada saltou a jaqueira, a cerca, uma velha goiabeira, um pé de araticum, se equilibrou numa mamona, olhou para trás e mergulhou na mata, chilreando depressa, feito uma pipira-preta, que escondia secretamente manchas brancas embaixo de suas asas e se alimentava de botões de flor, com seu canto rápido que eles não sabiam ao certo se era de felicidade ou medo. 

Charlie ficou paralisado no alto da jaqueira, venho o bichinho desaparecer na mata escura. Seu coração disparou, as mãos e as pernas tremeram feito vara verde, não pela fuga inesperada do mico, mas por se dar conta de que estava a mais de doze metros de altura.

            – Você espantou o mico, Gambá! – reclamou, quase balbuciando, do alto da árvore.

            – Desculpe, Charlie. Não pude evitar – lamentou o outro.

            – Acho que nem um purgante resolve esse problema. Desde que a gente conhece Gambá que ele peida sem parar. O que é que você anda comendo, hein? Não é de se admirar que você tenha um apelido bem sugestivo – Tati cruzava os braços furiosa com a fuga do mico-leão, recordando que o codinome do amigo fazia referência àquele animal de hábitos noturnos e cara de rato que costuma soltar um cheiro ruim quando se sente ameaçado. – Só quero saber agora o que vocês vão dizer a painho.

            – Só quero saber agora o que vocês vão dizer a painho! – ironizou Charlie repetindo a frase da irmã ainda do alto da árvore. 

De súbito, o galho em que ele se segurava se quebrou e ele começou a cair de galho em galho, como se fosse uma daquelas bolas do pinball[1], em que a gente vai marcando pontos cada vez que a bola acerta mecanismos eletromecânicos e faz barulhos assim: Tim! Poim! Tum! Prink! Doiimm! Por sorte, ficou preso pela bermuda, com o traseiro para cima, antes de atingir o chão, tal qual fica presa a bola do pinball quando o mecanismo a segura.

– Ai, ai, ai, ai. Me ajudem a descer daqui! – gritou.

            – Pois fique sabendo que, se depender de mim, você vai ficar aí até anoitecer – Tati cruzou novamente os braços e ameaçou ir embora. Gambá caiu na gargalhada. – E você, seu frouxo – se virou para Gambá –, saiba que o mico-leão fugiu por sua causa. Agora ele não vai mais para a reserva ecológica. É capaz até de morrer nesta mata.

            – Tati, Tatizinha, você vai precisar de mim nas aulas de história, não é? – dizia Charlie tentando convencer a irmã.

            – E daí? Agora tenho o Júnior que pode me ajudar. Não preciso mais de você. Se vire! Eu vou embora – foi se afastando.

            – Júnior não sabe nem quem descobriu o Brasil, sua dentuça! – disse.

            – Dentuça? – Tati fechou as mãos bufando. – Breve irei usar aparelho e vocês não vão mais me chamar de dentuça. Você vai ver, Charlie. Eu que nunca mais ajudo você com Ludmila – retaliou com os olhos cheios de lágrimas, lembrando ao irmão que não faria mais o papel de pombo correio para a amiga da sétima série por quem Charlie era apaixonado. – De hoje em diante, vou ser amiga de Beto e ajudar ele a conquistar sua futura namorada! – concluiu.

            – Tati, Tatizinha, eu estava brincando – respondeu mudando o tom. – Agora me ajuda a descer daqui.

            – Charlie, tenta segurar nesse cipó perto de você. Fecha os olhos e vai descendo devagarinho. Lembra daquele eucalipto que a gente subiu para ver o ninho de sanhaço? – recordava Gambá. E não deu certo, porque Charlie desceu tão rápido da árvore, que as coxas ficaram em carne viva!  

            – Como posso fazer isso se estou preso pela bermuda? Minhas pernas não param de tremer.

            – É o que dá querer bancar o homem macaco. Tomara que você caia. Além de receber uma bronca de painho, vai se machucar todo – dizia Tati furiosa.

            – Pois fique sabendo que, quando eu descer daqui, não vai ter painho que dê jeito nas suas bonecas. Vou rasgar todos os seus vesti... – nem bem terminou a frase, o galho que o segurava pela bermuda se partiu e ele voltou a cair. Caiu quase cinco metros e acabou ficando preso, dessa vez, pela gola da camisa, tal qual frango abatido, perto do chão. Gambá gargalhou ainda mais achando aquela cena engraçada.

            – Eu vou embora e vou deixar vocês – a menina se afastou mais um pouco.

            – Tati – ele estava furibundo –, eu vou contar para mamãe que foi você quem quebrou o espelho do banheiro dela.

            – É? Pois eu conto para painho que você andou colando na prova de matemática – retrucou também, ameaçando.

            – Mentira! Eu estava tirando uma dúvida com Gambá. Não foi, Gambá? Fala que foi, Gambá! – gritava Charlie.

            Gambá continuava rindo. Ria tanto que até se contorcia no chão. Por pouco não soltou novas flatulências. Charlie balançava as pernas a menos de um metro do solo. 

            – E a galinha que morreu depois daquela experiência que vocês fizeram? Você disse para mamãe que ela tinha ficado doente – continuou ela.

            – Você também participou da experiência, sua dentuça! – gritou Charlie recordando, arrependido, daquela experiência maluca de obrigar a galinha de angola a ingerir álcool até ficar bêbada. Ao invés de ouvirem o tradicional brado da pintadinha “Tô fraco, tô fraco”, quando a soltaram, eles juravam que ouviram a galinha sair gritando “Tô bêbada! Tô bêbada! Tô bêbada!”, mas ninguém acreditou.

            – Fique sabendo que eu vou chegar em casa primeiro que você e te dedurar. Sua arapuca vai estar pronta, cabeça de melão! – e sumiu por trás dos arbustos. 

Charlie berrava de raiva, esperneava, e se balançava para frente e para trás para ver se o galho quebrava. O tempo estava fechando. Nuvens pesadas e cinzentas se formavam no céu. O vento soprou mais forte. Gambá começou a ficar nervoso. De longe, ainda se ouviu uma frase de Tati, “Gambá, meu pai nunca mais vai deixar você passar as férias aqui no sítio!”. 

            – Desce logo, Charlie. Vai começar a chover – disse Gambá apreensivo.

            – Por que você não pega aquela escada ali e põe aqui? Assim posso descer mais depressa – retrucou Charlie. Um raio brilhou no céu. Segundos depois, trovejou. Gambá se jogou no chão. – Pega logo a escada, medroso, antes que a chuva comece a cair. 

            – Meu pai do céu! É agora que eu não vou parar de soltar pum! – declarou Gambá. Em dias de trovoada, seus gases ganhavam mais intensidade. Ele costumava liberar mais de sessenta flatulências por dia! Um feito incrível, se levarmos em conta que o normal é de quatorze puns por dia. Por isso o menino era tão magro!

“Quem peida muito emagrece muito”, dizia a mãe de Gambá. 

“É por isso que você não engorda!”, afirmava dona Judite. 

            – Gambá, nem pense nisso, nem pense nisso. Pega logo a escada, anda! – Charlie estava quase berrando. Gambá se arrastou até a pequena escada e a colocou embaixo de Charlie. O menino a alcançou com a ponta dos pés, se equilibrou e conseguiu se soltar do galho. – Ufa! Pensei que fosse cair. Obrigado, Gambá! – disse respirando aliviado.

            – Obrigado, nada! Lembra daquelas figurinhas da seleção brasileira de 1982 que você me prometeu? Agora eu quero.

            – Gambá, você não dá prego sem nó, né? – disse.

            – Prego sem nó? E prego dá nó? – perguntou espantado.

            – E não? Meu avô dizia que quando...

            Gambá interrompeu:

            – Para com isso, Charlie. Essas histórias de seu avô, todo mundo sabe que são invenções! – riu. 

Vô João gostava mesmo de contar umas histórias mirabolantes de monstros, heróis, caçadas e contos de fada de que ele dizia ter participado. Vô João jurava de pé junto que ele havia sido o homem que vendeu os feijões mágicos para João na história de “João e o pé de feijão”, e que também tinha sido o caçador que matou o lobo e salvou a vovozinha. 

            – Qual é, Gambá? Você é ou não é meu amigo?

            Gambá não teve tempo de responder. Outro raio rasgou o céu e atingiu em cheio a velha jaqueira. O enorme estrondo do trovão que veio logo em seguida se misturou ao pesado galho da árvore, que foi caindo na direção dos meninos. O estrondo só não foi maior que o pum de Gambá naquele dia em que eles fugiam de uns caçadores. Charlie e Gambá não sabiam se gritavam ou se corriam. Tati, que até então parecia ter ido embora, surgiu de repente por trás de uma moita de capim alto e saiu esticando-os para longe. Pegaram a estrada em direção à sede. Era um caminho de vegetação rasteira, recheado de pés de goiabeiras, carregadas de frutos, um verdadeiro banquete para os sanhaços, gurins, sabiás e uma infinidade de outras aves. 

As primeiras gotas de chuva começavam a cair. Mais abaixo, numa ladeira que terminava no pé da grande Lagoa Encantada, inúmeros araticuns, cajueiros, mangueiras e tamarindeiros completavam o pomar. Outro estrondo se ouviu. Sempre que se via um raio, um trovão estava por vir. E, claro, um pum de Gambá!... Peeinnnnnnnnnnnnnn!

Só que aquele trovejo tinha vindo sem um raio. Os pássaros voaram desorientados, sem saber para que lado iam. De onde eles estavam, não se via mais a palmeira secular de mais de quarenta metros de altura entre os araticuns. Charlie chegou a pensar que o estrondo havia saído de um dos puns de Gambá, mas se enganou.

– Caramba, Gambá. Foi você quem peidou? – indagou Charlie, com os olhos esbugalhados.

– O barulho veio da lagoa – Gambá também estava atônito.

– Vamos embora que a chuva está aumentando – dizia Tati quando a chuva engrossou e os pingos começaram a escorrer pela copa das árvores.

– É melhor a gente ver o que houve – Charlie resolveu investigar. Gambá foi logo atrás. O que Gambá tinha de medo Charlie tinha de curiosidade e Tati tinha de precaução. Porém, na hora de desvendar um mistério, nenhum deles se preocupava com isso. Medo, curiosidade e cautela, era tudo uma coisa só para aqueles três pré-adolescentes.   

– Pode ser perigoso. Voltem aqui! – esbravejou a menina levando as mãos sobre a cabeça, preocupada. Por um breve tempo, ficou sem saber se voltava para casa ou se seguia os garotos. A curiosidade gritou mais alto. Acabou decidindo ir atrás deles. Tati também queria saber o que havia acontecido.



[1] Antigo jogo eletromecânico onde o jogador manipula duas ou mais 'palhetas' de modo a evitar que uma ou mais bolas de metal (geralmente mais bolas aparecem em "modos missão no jogo") caiam no espaço existente na parte inferior da área de jogo. A bola, quando entra em contato com certos objetos espalhados pela área de jogo, estimula um som e aumenta a pontuação do jogador.

 

O livro é uma produção da Comunidade Tia Marita, com apoio financeiro da Prefeitura Municipal de Ilhéus/Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, Secretaria Especial da Cultura/Ministério do Turismo.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

O POVOADO DAS ONZE MIL VIRGENS - CAPÍTULO 2: "A PRESSA DE MESTRE VIRGÍLIO" E CAPÍTULO 3: "A CHEGADA DOS PEIXES-VOADORES"

 A PRESSA DE MESTRE VIRGÍLIO

 

 

Seu Ananias levou quase meia hora decidindo se colocava o banco a leste ou a oeste do Monumento. Não sabia se o mais bonito de se ver, no espetáculo que estava por vir, seria a chegada ou a partida. Quem registrou esta indecisão de Seu Ananias foi Mestre Virgílio, que, mesmo andando a passos largos, como se quisesse vencer o vento gelado que soprava do Monte, não passou despercebido pelo velho carpinteiro. O mestre retardou os passos e esgueirou-se por trás de uma lixeira. Quando, por fim, se afastou sorrateiramente, quase em silêncio, aproveitando a oportunidade em que o carpinteiro ficou de costas, preocupado com a melhor posição do banco na praça, “o homem que tudo vê”, não perdeu a chance de berrar: 

- Pressa venturosa, vagar desastrado!

O provérbio na ponta da língua soou como um presságio e pegou Mestre Virgílio de surpresa. A resposta do passante quase saiu, mas ele sequer a balbuciou. Preferiu engolir em seco sem deter o passo. Apenas baixou a cabeça e acelerou ainda mais as passadas como um gnu à frente de sua manada. Seu Ananias inspirou profundamente, deu de ombros, coçou a testa envelhecida e, como se já soubesse o destino do Mestre Virgílio, vaticinou:

- É cousa! 

Se havia uma coisa que deixava todo morador de Onze Mil Virgens com uma pulga atrás da orelha, morrendo de preocupação, desconfiado, suspeitando, conjeturando, e todo o mais que o significado desta expressão pudesse exprimir, era quando Seu Ananias exclamava: “É cousa!”. A frase exclamativa que mais parecia uma afirmação sempre vinha carregada de uma ou de outra certeza: a de que o indivíduo escondia alguma coisa ou alguma coisa estava prestes a acontecer com o indivíduo. E isso fazia de Seu Ananias não apenas o homem que sabia de tudo, mas o carpinteiro que adivinhava demais! E adivinhar demais suscitava comentários, que quase sempre saíam da boca de Isaura Cornejo, “A mulher do marido que ninguém vê”,  e atual presidente da Confraria dos Letrados, que dizia aos quatro cantos do povoado que:

- O velho tem parte com o diabo!

Se a adivinhação era uma benção ou uma maldição na vida de Seu Ananias, cabia ao povo de Onze Mil Virgens decidir. O fato é que o agulhão-vela do atlântico, o gnu das savanas – um fato extraordinário para um homem que beirava os noventa anos de idade - com seus passos largos e rápidos, corpo esguio, pernas de girafa, finas e longas, em direção ao Monte da Febre, carregava uma pá com cabo de jacarandá. Na cintura, um embornal de couro consumido pelo uso, carregado de ferramentas de entalhe e uma faquinha curta, de cabo de osso, ao lado de um pequeno envelope, impregnado de capim seco, com um segredo guardado há cinquenta anos.

 

 

Ilustração de Jô Oliveira



A CHEGADA DOS PEIXES-VOADORES

 

 

Seu Ananias finalmente se sentou no banco. O sol foi despontando por trás do Monte da Febre, às cinco e trinta e cinco da manhã. Concomitantemente, os peixes-voadores surgiram numa grande nuvem, tal um bando de gafanhotos, estridulando, como  um som agudo mais alto estalado de uma nota de viola. As pessoas foram saindo de suas casas, crianças pulavam pelas janelas, se divertindo com o barulho estridente da migração. Um fenômeno único, que durava exatos quarenta e cinco segundos. Tempo suficiente para percorrer os quatrocentos metros entre o salto do Rio Vermelho, a Praça da Igreja Matriz, e voltar novamente ao Rio Vermelho. Os peixes evitavam a barragem que ficava na bifurcação da corrente e a vegetação de aguapés e capões do mato. O rápido sobrevoo no céu do pequeno Povoado das Onze Mil Virgens era um espetáculo do outro mundo. Não havia sequer um morador do povoado que soubesse responder por que aqueles peixes magníficos, acostumados a viver nas águas quentes das regiões tropicais e subtropicais dos oceanos, escolhiam aquela trajetória para voltar ao Oceano Pacífico. A visita dos peixes-voadores para uns, era o sinal do fim dos tempos; para outros, a chegada das boas novas.

A fantástica e inusitada migração dos peixes-voadores ocorria uma vez por ano, na época das cheias, quando começava o período do acasalamento. Peixes grandes e pequenos, em seu balé coreográfico, deslizavam como serpentes, entre as folhas alternadas e espiraladas das árvores que sombreavam a Praça da Matriz. As crianças saltavam, gritavam e sorriam excitadas tentando tocar as escamas azuis dos peixes-voadores. Um azul diferente, índigo, quase violeta, que refletia a luz dos primeiros raios de sol que despontavam no povoado. 

Os olhos dos peixes-voadores pareciam ser mais achatados que os olhos dos peixes comuns. As barbatanas peitorais tinham quase o tamanho deles, assim como as barbatanas pélvicas. Juntas, formavam quatro asas que impulsionavam os animais para a frente. A impressão que se tinha, ao vê-los revoar sobre as cabeças dos moradores, era a de que os peixes-voadores, batendo as asas, assemelhavam-se a cavalos a galope – o mais rápido dos movimentos. O movimento dos peixes lançava água do Rio Vermelho que escorriam de suas escamas. Pareciam gotas de chuva taciturnas e cálidas que caíam sobre os olhos estupefatos e curiosos exalando um cheiro meio desagradável. Seu Ananias dizia que aqueles pingos davam sorte, por isso fazia questão de ficar bem embaixo da passagem deles. 

Aquele imenso cardume mergulhou na direção do rio, como se o magnetismo das águas os puxasse de volta para seu habitat. Entretanto, ao invés de imergirem imediatamente de ponta-cabeça, eles planavam como gaivotas por mais um tempo sobre a lâmina d’água. As quatro asas paravam de bater até que o peito tocasse levemente o espelho d’água, com a cauda conduzindo o movimento majestoso, exatamente como um leme, a orientar o caminho a seguir. E, como num passe de mágica, diante dos olhares fixos dos moradores, submergiam nas águas escuras e frias do Rio Vermelho. 

Os habitantes do povoado, inquietos, irrompiam em palmas perante aquele espetáculo ímpar da natureza. E quando tudo parecia terminado, grupos menores submergiam para brincar e ziguezaguear na face das águas, rio acima, instigando os cachorros a segui-los, latindo, pela margem direita do Rio Vermelho até o encontro com o Rio Miranda. 

Em tempo, para coroar de êxito ainda mais aquele presente do céu, um bando de cotovias atravessou o rio em voo ondulante, para cima e para baixo, alternadamente. No minuto em que as aves, cantando, subiram bem alto até parecer apenas um ponto no firmamento, os peixes-voadores desapareceram no rio, dando adeus à sua migração[1]

 



[1] A migração dos Peixes-Voadores e todos os acontecimentos que se sucederam após a sua chegada estão registrados no Livro de Tombo das Extraordinárias Passagens do Povoado das Onze Mil Virgens (N.A.).

domingo, 16 de maio de 2021

DA SÉRIE FRASES E PENSAMENTOS

O carro de feno, de El Bosco. Pintura que integrou a capa de Rio das Almas


    “Durante a escrita de "Rio das Almas", cheguei ao ponto de achar que já havia escrito tudo. Mas aí vem as pistas que foram deixadas nos primeiros capítulos, os mistérios que ainda não foram revelados, um personagem-chave que foi citado em um determinado capítulo que precisa ser evidenciado e a decisão mais difícil: como terminar o que se começou. Ando de um lado a outro do meu espaço de escrita, deixo o romance curar, embaixo da fluorescente, como se ele estivesse defumando sob a luz do sol. Em situações assim, Gabriel García Marquez pedia logo uma rosa amarela. Uma das muitas superstições do Gabo. Ele tinha as crendices, eu tenho Deus. Quem não tem Deus, tem crendices, a vida é assim. De súbito, nem mesmo terminei Rio das Almas e já surge a ideia de um novo romance. Pego meu bloquinho de notas, escrevo o título e uma pequena estrutura dos primeiros personagens. Retomo a trajetória de Deocleciano, protagonista de Rio das Almas, e descubro que, assim como os meus personagens, também esqueci de contar a história que dá título ao romance. E aí volto a trabalhar escrevendo que "DESDE QUE AS PESSOAS COMEÇARAM A ESQUECER DAS COISAS, ninguém mais se lembrava porque o rio das Almas se chamava Rio das Almas. Viva a literatura!.” (Pawlo Cidade)

sábado, 15 de maio de 2021

O POVOADO DAS ONZE MIL VIRGENS - CAPÍTULO 1 - SEU ANANIAS, “O HOMEM QUE TUDO VÊ”

Mapa do povoado das onze mil virgens/Ilustração de Jô Oliveira/Pawlo Cidade


Naquele extraordinário ano de 1942, quarta-feira, 16 de setembro, Seu Ananias, filho de seu Natanael, um dos mais antigos moradores do Povoado das Onze Mil Virgens, foi o primeiro a chegar na Praça da Igreja Matriz. Muito antes dos primeiros raios de sol despontarem por trás do Monte da Febre, ele chegou devagarinho, trazendo um banquinho de madeira, feito por ele mesmo, no último inverno. Escolheu o melhor local, de onde podia ver o tão esperado espetáculo secular da natureza, com os olhos “que a terra um dia haveria de comer”. E que olhos! Seu Ananias conhecia a vida de todos os moradores da vila. Sabia de tudo, antes mesmo de contarem a ele. Como ele sabia, ninguém sabe. Era um grande mistério, um segredo que, naquele grande dia, foi revelado. “Porque nada está encoberto senão para ser manifesto; e nada foi escondido senão para vir à luz”, dizia a beata Maria do Rosário, recordando uma passagem das escrituras sagradas.

Os irmãos Silva diziam que seu Ananias possuía o maior olho do mundo. A afirmação, em tom jovial, partira do irmão mais novo, João Silva. 

Labão, filho de Tiago de Alvarenga – o Tiagão – logo protestou:

- Quem tem o maior olho do mundo é Deus!

- Eu duvido! – Insistia João Silva, ainda espirituoso. Em seguida acrescentou: 

- Ananias tem o olho muito maior que o maior olho do maior monstro marinho do mundo, o polvo gigante das profundezas do oceano!

E todos caíram na gargalhada. Labão não sabia se ria da comparação do jovem ou da mentira que ele acabara de contar. João fantasiava demais. A culpa da exagerada comparação do irmão mais novo fora do pai, Josué Silva, que deu ao filho, quando completou doze anos, “Vinte Mil Léguas Submarinas”, de Júlio Verne. A bordo do famoso submarino Náutilus, sob o comando do Capitão Nemo, João viajou em suas páginas por mais de vinte vezes.

Havia ainda os que juravam que os olhos de Seu Ananias mais pareciam os olhos de uma mosca, “porque enxergavam tudo e todos em todas as direções”. A mosca, assim como a maioria dos insetos, possui olhos compostos, que fazem com que ela tenha uma visão de 360 graus! Seu Ananias era, no linguajar popular, também, “o homem mosca!”

Seu Ananias não andava, deslizava. Saía arrastando as alpercatas de couro pelas ruas empoeiradas do povoado, com os pés sempre na largura dos ombros, dobrando levemente os joelhos, empurrando-os, curvando igualmente o quadril e inclinando-se para a frente. Para manter o equilíbrio, Seu Ananias esticava os braços também para a dianteira e fitava seu destino, apoiado pela bengala de peroba. Os passos curtos evitavam uma topada ou um inesperado escorrego. Caminhava numa velocidade constante, num misto de equilíbrio e afastamento dos membros inferiores. Cada pé dava o impulso necessário ao outro, deslizando um por vez. Primeiro o pé esquerdo, depois o pé direito ao lado da bengala, transferindo para cada um seu peso, sem deixar, em nenhum momento, o pé deslizar fora do chão. Só assim se sentia mais confiante.

Da Rua de Lameque, também conhecida como “Rua das Putas Tristes”, de onde talvez tenha nascido o título do livro do escritor Gabriel García Márquez[1], até a praça da Igreja de Santa Úrsula, a padroeira do povoado, Seu Ananias levava uma manhã inteira. Era tão lento, tão lento, que uma lesma diante dele parecia uma lebre. E coitado daquele que se dispusesse a acompanhá-lo para apressar-lhe os passos. 

- Tenho todo o tempo do mundo, resmungava. 

E naqueles passos vagarosos, porém, observadores, analisava o ir-e-vir de cada um dos moradores de Onze Mil Virgens. Sabe aquele periscópio que sai do submarino para olhar em volta? Era como Seu Ananias se comportava quando pausava sua caminhada antes de chegar ao seu destino. Nada ficava às escondidas do olhar atento do velho. Parecia que aqueles olhos eram feitos de poderosas lentes de aumento que podiam enxergar através das paredes, o que lhe rendeu outro apelido: “Senhor Raio Xis”.

Dona Ruth, a bodegueira dos Secos e Molhados, debruçada sobre o balcão da mercearia, era a primeira a sinalizar quando Seu Ananias parava: 

- Olha lá o velho, parece uma coruja girando aquele pescoço de rosca. E fazia um gesto cômico com as mãos para os fregueses. Em seguida acrescentava em tom de espirituoso: 

- Os olhos de Ananias estão a ti espiaaar!

O som agudo e prolongado de sua gargalhada lembrava aqueles mamíferos da savana africana, as hienas. Entretanto, dona Ruth não viu quando Seu Ananias colocou bem perto do Monumento das Virgens o banquinho que ele mesmo fez. Era um banquinho um pouco maior que um tamborete, com cinquenta centímetros de altura, polido à mão, acoplado a um encosto de mais vinte centímetros, feito de peroba-rosa do resto de uma madeira que foi parar na sua carpintaria. Embora fosse um banco pequeno, era pesado. A peroba-rosa é uma madeira dura, e é muito mais durável quando não molha nem fica muito tempo em contato com o solo. Seu cerne varia entre o róseo-amarelado e o amarelo-queimado, delicadamente rosado, tendendo mais para o vermelho-rosado uniforme ou com manchas e listras escuras, tal qual a aparência do banco. A peroba-rosa quase não tem cheiro, mas tem um gosto amargo. Seu Ananias costumava também fazer o chá da casca da peroba-rosa, principalmente a amargosa, para proteger contra as picadas de inseto, sobretudo o que transmitia a malária. Aprendera com o pai o hábito de tirar uma pequena lasca da madeira, quase da espessura de um palito de dente, e mastigar para sentir, segundo ele, “o sabor da madeira”. 

- A peroba-rosa é a madeira! afirmava. Não sabia explicar por que tinha uma preferência especial por ela, contudo se orgulhava de já ter produzido caibros e ripas para muitos telhados, marcos de portas e janelas, venezianas, portões, molduras – sobretudo a moldura do quadro da senhorita Theda Bara – a loira mais metida e pernóstica de Onze Mil Virgens. A única com nome estrangeiro, batizada pela madrinha que veio dos “States”, “em homenagem à atriz americana”. 

De todos os móveis que fez usando a peroba-rosa, o que mais lhe deixava orgulhoso eram as carteiras escolares para seus netos e para todas as crianças do povoado que estudavam na Escola Municipal do Ensino Fundamental de Onze Mil Virgens. As carteiras escolares simbolizavam a extensão de seu ensinamento, mesmo sem saber escrever seu próprio nome. Eram verdadeiras obras de artes plásticas, feitas à mão, uma a uma, personalizadas com sua marca registrada: um peixinho, semelhante àqueles utilizados pelos cristãos primitivos. 


[1] Gabriel García Márquez escreveu “Memória de Minhas Putas Tristes”, publicado no Brasil, em 2005, pela Editora Record. Vale salientar que a história escrita pelo colombiano nada se compara com o arrogante Lameque, produtor de café que morava com suas três esposas. Exceto pelo fato de ambos – o personagem de Garcia e o atrevido Lameque possuírem quase a mesma idade (N.A.).

NOTA: O romance O povoado das onze mil virgens não foi dividido em capítulos númericos (1,2,3, etc). Mas em títulos. Para que você possa acompanhar a publicação dos capítulos neste blog, eles foram numerados.

TIRINHAS

  Texto: Pawlo Cidade Deadpool: Marca registrada da Marvel Jorge Amado: Foto de Mario Ruiz Mais tirinhas na minha página oficial do Instagra...