domingo, 6 de junho de 2021

DEGUSTAÇÃO DE MAIS UM CAPÍTULO DE "O TESOURO PERDIDO DAS TERRAS DO SEM-FIM", A SER LANÇADO BREVEMENTE


Versão final da capa da nova edição, com ilustração de Jô Oliveira** e arte-final de Marcel


 E A TERRA ROLOU!*

  

Quando chegaram ao alto da ladeira, presenciaram um grande deslizamento de terra. Toda sorte de sapucaias, cajueiros e araticuns daquele lado do sítio haviam descido ladeira abaixo. Era terra que não acabava mais. A lama cobriu boa parte das novas plantações do cacau e foi parar na lagoa. Os meninos ficaram espantados com o escorregamento.

– Bem que painho falou que este lado era perigoso – disse Tati ao se deparar com o destroncamento da terra.

– O cacau não conseguiu impedir o deslocamento da terra. Essa terra é muito fofa. Deve ter acumulado muita água – Charlie falava como um geólogo experiente querendo imitar o pai que, além de ter se formado em geografia, havia se especializado em educação ambiental.

– Olha lá, gente! É o mico-leão! – sobressaltou-se Gambá. 

O mico-leão-da-cara-dourada estava preso a um dos galhos do araticum que desceu junto com o barranco, com as pernas e a cauda cobertas pela lama vermelha e um olhar triste, guinchando de dor. Charlie não pensou duas vezes, quis logo salvar o sagui.

– Temos que tirar ele de lá. A terra pode correr outra vez. Ele vai ser soterrado – precipitou-se para descer. Tati o segurou pelo braço.

– Está maluco, mano? Não vamos conseguir pegá-lo. É muito perigoso.

– Se a gente trabalhar em equipe, não! – e saiu procurando o cipó de uma das plantas trepadeiras que estavam enroscadas entre as árvores que caíram. A ideia era prender o cipó à sua cintura e descer o barranco. Quando encontrou, voltou dizendo: – Eu vou descer e vocês vão me segurar, igual aquele filme que a gente assistiu. 

“Que loucura! Menino inventa é coisa. Filme não é realidade, filme é ficção!”, alertara uma vez seu pai.

– Larga de bancar o herói, Charlie! – ralhava Tati.

– Você vai ajudar ou não? É a única chance de trazer o mico de volta.

– Droga! Por que eu fui ter um irmão tão teimoso? – e segurou o cipó de imbé com a ajuda de Gambá. Era o cipó de imbé que Vó Ninha gostava de usar para fazer cestas e passar o tempo quando visitava o sítio.

A chuva ficou ainda mais densa. O mico-leão chilreava cada vez mais forte. Tati começou a chorar. Estava tremendo de medo. Os relâmpagos haviam cessado, mas tudo levava a crer que eles logo voltariam. A água que escorria pela ladeira poderia provocar mais deslizamentos.

– Solta mais o cipó! – ordenava Charlie, se segurando como podia, entre troncos, pedras e o barro, enquanto descia. 

– Estou começando a ficar nervoso. Aliás, eu já estou nervoso. Meu intestino está revirando, eu vou soltar um... – Gambá levou uma das mãos ao abdômen. 

– Não! – berrou Tati, paralisando imediatamente Gambá. – Se soltar mais um dos seus terríveis puns, eu juro que painho vai ficar sabendo de tudo! E você, Gambá, vai pagar o pato!

– Que pato? Eu não peguei pato nenhum – largou o cipó. Charlie escorregou ladeira abaixo. Tati foi junto. Gambá, ao perceber o que havia feito, se esticou todo e conseguiu agarrá-la pelo pé esquerdo, bem na tira da sandália de couro, ainda se defendendo do tal pato. – Juro que não peguei o pato Pintado! Eu juro! Isso foi coisa daquela raposa velha. Não vou pagar pato nenhum!

– Não foi isso que eu quis dizer, seu bobão! Agora, tenta me puxar pra cima – dizia ela, quase gritando.

O pato Pintado era o chamego de dona Marita. Gostava de acordar os pais de Charlie às cinco da manhã para comer. Costumava ficar de vigia na cancela principal do sítio. Fazia o maior barulho quando um estranho se aproximava. Um dia, desapareceu misteriosamente. Gambá pensou que Tati estava culpando-o pelo desaparecimento do pato. Mas depois que Seu Guiga encontrou um monte de penas embaixo do galinheiro, deduziu que uma raposa velha que rodeava o sítio havia sido a responsável pelo sumiço de Pintado. Tati só estava querendo dizer que o grande culpado de toda aquela confusão era ele. Daí a expressão, “pagar o pato”.

– Parem com essa discussão! Vejam, eu peguei o macaco! Eu peguei o macaco! – exclamou, eufórico.

– Charlie pegou o mico-leão! – disse Gambá, largando Tati. Os irmãos desceram mais depressa em direção à lagoa. Gambá se desesperou. Os raios voltaram. Antes mesmo de o trovão vir em seguida, Gambá soltou outro pum insuportável: “Brummmmm!”

Charlie e Tati se agarraram aos galhos em meio aos destroços. Seus pés estavam a meio metro da lagoa. Naquela parte do espelho d’água, era comum o aparecimento de sucuris, as maiores serpentes da floresta. Vô João dizia que elas se amotinavam no capim alto que cobria aquela área, onde costumavam dormir e caçar. Ele mesmo havia visto uma daquelas enormes cobras engolindo um boi inteirinho na beira d’água, um não, três bois. Agora imagine uma cobra com três bois na barriga. Que tamanho não era essa cobra, hein? Foi num dia chuvoso como aquele.

– Joga o cipó, Gambá! – vociferava Charlie, tentando puxar Tati para a parte mais alta da árvore caída. Ele passou o mico-leão para ela. Em meio aos trovões, ouviram os berros de dona Marita e Seu Guiga procurando por eles. Tati começou a chamar pelo pai. 

– Estamos aqui, painho! Estamos aqui nos pés de cacau! – dizia ela.

Gambá puxou o cipó e arremessou na direção de Charlie. Mais troncos e terra começaram a descer, arrastando tudo que foi encontrando pelo caminho. Raios e trovões se intensificaram. Charlie amarrou o cipó na cintura de Tati e gritou para que Gambá a puxasse. Seu Guiga e dona Marita chegaram a tempo de ajudar Gambá a trazer Tati para cima. A copa de uma goiabeira cobriu Charlie, arrastando-o para a água. O pedido de socorro do menino se misturou ao barulho dos trovões. 

Seu Guiga, desesperado, acreditando que o filho se afogaria nas molhas da lagoa, desceu escorregando na direção do menino. Infelizmente não chegou a tempo de impedir que Charlie desaparecesse nas águas escuras da Lagoa Encantada.


*Trecho do romance infantojuvenil, "O tesouro perdido das terras do sem-fim", a ser lançado brevemente. Com apoio financeiro da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Ilhéus, Secretaria Especial da Cultura, Ministério do Turismo, Governo Federal, através do edital Arte Livre da Lei Aldir Blanc.

** Saiba quem é o artista/ilustrador Jô Oliveira clicando aqui.

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