terça-feira, 22 de junho de 2021

OPINIÃO





INTERMITENTE DO ESPETÁCULO

Pawlo Cidade


6 mil cinemas, 3 mil livrarias, 2500 casas de show, 1200 museus e mais de mil 1000 teatros fechados. 2540 shows cancelados em festivais de verão do Hemisfério Norte, que tentam sobreviver a um prejuízo da ordem de € 3 milhões. Essa era a situação da França no auge da pandemia. A Cultura na França é uma área que emprega mais de 1 milhão de franceses e que produz dividendos sete vezes maiores que a indústria automobilística do país. Pesquisando sobre a reação dos governos da Europa, a exemplo da Alemanha, Reino Unido e a própria França, em relação ao setor cultural, não me surpreendi com o posicionamento destes países.

Tomando apenas a França como modelo desta questão, o presidente Emanuell Macron anunciou logo que manteria o sistema de remunerações dos artistas, produtores e técnicos das artes e a criação de um fundo de indenização para todos os profissionais do audiovisual francês cujas produções fossem canceladas devido à crise do coronavírus. Surgiram também outras ajudas de emergência que foram dirigidas pelo Centro Nacional de Cinema da França. Neste período, também entrou em ação um negócio chamado “Sistema da Intermitência” que nossos políticos podiam muito bem copiar para socorrer a classe artística, independente da implantação da Lei Aldir Blanc. 

O “Sistema da Intermitência” é uma especificidade francesa que garante a sobrevivência de artistas e técnicos do espetáculo durante o período em que não estão em atividade na França. Com ou sem pandemia! Para ter esse direito cada profissional deve cumprir e comprovar 507 horas de trabalho por ano, sem as quais não se consegue o subsídio. Esses trabalhadores são denominados de “intermitente do espetáculo”. Explico: Trata-se de um artista ou técnico que trabalha de maneira ocasional em empresas de produção teatral, cinematográfica ou de audiovisual em geral e que se beneficia de um seguro desemprego calculado a partir de um número mínimo de horas trabalhadas e uma contribuição suplementar aplicada especificamente para esta categoria, no regime previdenciário francês.

É uma espécie de seguro de “retorno ao emprego” que funciona como um complemento de renda, dada a natureza sazonal da maioria das atividades culturais. Foi criado em 1936, para os técnicos e funcionários do cinema, impulsionado pela demanda dos produtores de cinema que, na época, não encontravam técnicos, artesãos e operários dispostos a trabalhar pelo tempo das produções. Mas só a partir de 1° de outubro de 2014 é possível acumular este seguro e um salário de acordo com um conjunto de critérios especificado no Código de Trabalho Francês. As produções realizadas por empresas do ramo da cultura duram pouco tempo, o que leva essas empresas a contratar artistas, atores, técnicos e operários por períodos pré-definidos em um tipo de contrato chamado na França de “contrato de duração determinada”. Este contrato pode ser, inclusive, de alguns dias. No entanto, os dias parados são também pagos graças ao sistema de intermitência. 

Na França, trabalhadores e trabalhadoras da cultura são considerados assalariados e não profissionais liberais. Penso que este tipo de auxílio pode ser criado pelo Município ou pelo Estado, fortalecendo e valorizando a classe trabalhadora da Cultura. Ao repensar as políticas públicas de cultura, o Estado há de se considerar essa gigantesca massa de trabalhadores e trabalhadoras que vivem exclusivamente de suas atividades artísticas e criar um auxílio permanente que garanta a sobrevivência destes profissionais em períodos pandêmicos ou nos hiatos compreendidos entre uma e outra atividade, como faz a França.

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domingo, 6 de junho de 2021

CONTO



“Eu não acredito em coincidência, eu acredito em destino.

É mesmo? Eu também.

Que coincidência!”

Roberto Laranjeira

 


"138"

Pawlo Cidade

 

 

Carlos Santiago acordou com uma baita dor de cabeça. Escovou os dentes, tomou banho e se perfumou com uma colônia Fiorucci, da Red Lions, que sua noiva lhe presentou em seu último aniversário, no dia 13/8, antes mesmo de tomar um gole puro de café sem açúcar. A colônia fazia parte de um kit masculino que veio acompanhado de um desodorante spray, de 138 ml, que ele quase não usava, pois preferia desodorantes sem perfume. Uma semana depois, navegando pelo mercado livre, descobriu que o mesmo kit estava sendo vendido com 138% de desconto. Uma pechincha que ele achou que pudesse ser um embuste.

No quarto, sobre o criado-mudo, ao lado da cama, repousava a Bíblia aberta em Coríntios 1, capítulo 13, versículo 8, que estava escrito em destaque amarelo: “o amor nunca perece; mas as profecias desaparecerão, as línguas cessarão, o conhecimento passará”. Mas ele não recordava de ter deixado o livro sagrado marcada naquela passagem. Acreditou que aquela era a palavra para ser lida naquela manhã e saiu para o trabalho. 

No caminho, a visão começou a ficar borrada e um estranho zumbido surgiu no ouvido. Como havia um posto de saúde no bairro, resolveu passar para medir a pressão arterial. Ao aferir a pressão, a enfermeira notou que o esfigmomanômetro mecânico marcava 13 X 8. 

- Sua pressão está quase alta. Você é hipertenso? - perguntou a profissional de saúde.

- Que eu saiba, não – respondeu, dizendo também que acordou com uma dor de cabeça forte e no trajeto até o posto de saúde, percebeu que a visão estava enodoada e tinha um estranho zumbido no ouvido como se fossem grilos cantando.

- Hummm, sintomas de hipertensão – sentenciou a enfermeira franzino a testa, por cima dos óculos de grau. - O médico vai lhe medicar. Mas é melhor ver isso depois. 


Ele assentiu com a cabeça. Depois, foi atendido com uma rapidez incomum, por um médico recém-formado que lhe aconselhou repouso e que evitasse, entre outras coisas, alimentos ricos em farinha branca, a exemplo de biscoitos, macarrão e pão francês. “Logo, pão francês!”, protestou. Mas como já estava se sentindo melhor, e já estava quase na hora de bater o ponto no trabalho, correu até a parada de ônibus e conseguiu pegar o veículo da linha 138, que só ia até dois quarteirões antes do que estava habituado a descer. Mas foi o que apareceu disponível naquele momento e não havia mais tempo a perder.

Chegou na empresa com 13 minutos e 8 segundos de atraso, transpirando que nem maratonista. O segurança da portaria fez um sinal, meneando a cabeça com jeito de dono da empresa, desaprovando o atraso. Carlos Santiago riu sem mostrar os dentes ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas respondendo sem falar: “Foi o ônibus”.

Quando se sentou na cadeira de seu escritório, depois de passar por uns 13 conjuntos de baias e 8 lixeiras que estavam enfileiradas no corredor, arte de Caldas, zelador que costumava juntá-las para depois redistribuir entre as baias, escolhendo a seu bel prazer quem ficaria sem lixeira naquele dia, ligou o computador e o navegador trouxe logo a manchete “Burkina Faso: ataques mais sangrentos desde 2015 deixam ao menos 138 mortos.” Deu de ombros e comentou: “Sei lá onde fica Burkina Faso. Parece até nome de remédio”, riu. Um colega da baia ao lado que ouviu seu comentário e, provavelmente, havia lido também a notícia que foi manchete em todos os jornais, respondeu alto: 


- Fica na chamada zona das três fronteiras, entre Mali e Níger, na África Ocidental. Sua capital é Uagadugu. 

- Valeu, professor! – exclamou. De fato, Eduardo Limeira, seu colega de trabalho, havia, por um tempo, lecionado geografia no tradicional Colégio Estadual Paes de Carvalho, porém, por razões pessoais, abandonou a docência e resolveu se dedicar à contabilidade. “É mais fácil de organizar e acompanhar todas as mudanças”, confessou certa vez ao comparar o ato contábil com o processo educacional. 

No Colégio Estadual Paes de Carvalho, meninos e meninas usavam meias e camisas brancas. As meninas vestiam ainda saia plissada e os meninos calça, tal qual a calça azul marinho de tergal que Carlos Santiago usava quando estudou da primeira a quarta série, sempre ocupando o número 13, no caderno de chamadas, e a 8ª. posição na fila, à direita da professora. 

- Viu a goleada de ontem, Santiago? 13 a 8. Seu Paysandu está morto! – gritou o outro companheiro por cima da baia – era Pedro Bola, torcedor fanático do Remo, que ainda conservava um Corcel 76, com placa do Mercosul, com final 1H38. Além da paixão pelo time de coração, gostava de fofoca. Foi ele quem espalhou para a turma que Carlos Santiago andava frequentando a casa do chefe, às sextas-feiras, quando o gerente saía para um carteado da Rua 13, sempre às 8 da noite. O buchicho deu uma confusão dos diabos e quase rendeu a demissão de Carlos. O zelador comentou que se tivessem inventado uma mentira daquelas com seu nome que ele se valeria logo do artigo 138 do Código Penal, pois já fora vítima de calúnia e difamação e seu vizinho teve que indenizá-lo. Carlos Santiago deixou por menos. Embora soubesse que fora Pedro Bola o difamador, não havia como provar.


Sentiu fome. Ao olhar o relógio digital na parede, bem em frente a sua sala, no corredor, viu que já passara em muito o horário do almoço. O aparelho registrava exatamente 13 horas e 8 minutos. Estava tão concentrado no relatório que teria que entregar até o final da tarde que nem notou quando os outros companheiros saíram para almoçar. Ficou empacado na página 138 do documento por causa de uma dúvida sobre o lançamento de uma nota fiscal sem razão social, semelhante a outra nota do mesmo valor, R$ 138,00, emitida no mesmo dia e horário. A princípio, pensou logo se tratar de uma duplicação, mas depois foi informado pelo estagiário que as duas notas foram emitidas no mesmo valor, dia e horário pelo departamento de compras. Coincidência? Não. Estava aí uma coisa que Carlos Santiago não acreditava: coincidência. 

- Seu Santiago, o senhor soube que o Fernando Reis, do RH, ganhou uma bolada no jogo do bicho? – comentou o estagiário antes de esclarecer a ele sobre as notas duplicadas.

- E foi?! – indagou o contador em tom de exclamação.

- O sortudo levou 138 mil! – disse o estagiário sonhando com o prêmio. 

Neste momento, uma luzinha se acendeu na cabeça de Carlos. Pegou rapidamente um lápis, um bloco de papel, e foi escrevendo o que ele chamou de “simultaneidades” que havia vivido até aquele horário, 13h8. “Não pode ser!”, pensou. “É muita simultaneidade”. E continuou anotando as situações em que o número 138 havia se manifestado desde que saíra de casa naquela manhã. 

- Você acredita em coincidência? – perguntou uma hora depois a atendente do restaurante depois de pagar o almoço, R$ 13,08 (treze reais e oito centavos). A moça riu, pensando que ele estivesse lhe dando uma cantada. – É sério, prosseguiu, acredita ou não em coincidência?

- Acredito – disse ela, com as bochechas avermelhadas e os olhos semicerrados.

- Pois é – e começou a descrever as “simultaneidades” do dia. Hoje eu li uma passagem bíblica que estava no capítulo 13, versículo 8; usei um desodorante que nem gosto muito que tem 138 ml; passei mal esta manhã e a minha pressão deu 13 X 8; peguei o ônibus da linha 138; cheguei com 13 minutos e 8 segundos de atraso na empresa; hoje teve um massacre na África com 138 mortos; meu time tomou de 13 a 8; duas notas fiscais no meu balanço deram exatamente R$ 138,00; acabei de pagar a você R$ 13,08 e ainda nasci no dia 13/8! – gargalhou. 


A atendente, de boca aberta, olhos grandes e esbugalhados, enquanto uma fila de 138 pessoas já se formava atrás dele, disse receosa esperando a cantada ou a bronca do cliente:

- Digitei sem querer o valor de R$ 138,00 do seu almoço e o senhor nem percebeu! 

Ele sorriu outra vez, como fez com o segurança da empresa, sem mostrar os dentes. O celular tocou. Era sua noiva. Saiu do caixa fazendo sinal com o dedo sob reclamação dos demais clientes pela demora. Mas, felizmente, a atendente estornou o valor e só lhe foi cobrado o valor devido. 

- Amor, você não vai acreditar o que aconteceu! – foi dizendo antes mesmo que Carla Nívea pudesse falar. A noiva não deu ouvidos ao que ele tentara contar e foi logo gritando excitada:

- Você acredita que hoje, eu e minhas amigas, pedalamos 138km? Chegamos numa fazenda, do quilômetro 13, onde morreram 8 vacas com a queda de um raio, você soube? Vou enviar a foto para você. Se tivéssemos passado no mesmo horário, nós é que teríamos morrido. Que horror!... Depois, passamos por uma cachoeira linda, amor, com 13 patos adultos e 8 patinhos. Não é coincidência? E você vive me dizendo que não acredita em coincidência! E agora, acredita? A gente chegou na fazenda depois de passar por 13 ramais e 8 pés de eucalipto, você acredita nisso? Meu Deus, estou tão surpresa que só depois a gente se deu conta que éramos 13 ciclistas, com 8 de nós completando 13 anos e 8 meses de ciclismo. Não é fantástico?

Carlos Santiago apenas gaguejou do outro lado da linha. Pensou até em contar também todas as “coincidências” do dia, mas não quis interromper a comoção e a alegria da noiva. Deixou-a acreditando que os acasos daquele dia haviam acontecido unicamente com ela.

- Amor, preciso desligar. As meninas estão dizendo que só temos 13 minutos e 8 segundos de pedalada. Não é uma loucura, tudo isso? Beijo! – e desligou.


Carlos Santiago sacudiu a cabeça ainda sem acreditar. A tarde no escritório, passou depressa. Até às 17 horas, quando costumava bater o ponto e correr para o ponto de ônibus, nenhuma coincidência com medidas, pesos ou outras coisas mais lhe ocorreu. Exceto, os três números finais do telefone de sua noiva: 138, que ele nem sequer recordava que ela havia trocado.

Chegou em casa com o dia desaparecendo. Morava a tanto tempo naquele prédio que podia subir até o seu apartamento de olhos vendados. Na portaria, um técnico da prefeitura conversava com Seu Josué, o porteiro, que interrompeu a conversa para cumprimentá-lo e dizer:

- Seu Santiago, a prefeitura está mudando toda a numeração da rua, para atender ao novo código de endereçamento postal. O número do nosso prédio agora é... 

Antes mesmo que Seu Josué pudesse concluir, interrompeu o porteiro com um ar de quem não estava acreditando muito no que ele mesmo iria dizer, mas disse:

- 138!

- Como o senhor sabia? – indagou o porteiro, deslumbrado, como uma criança maravilhada frente a magia dos adivinhos.

Carlos Santiago, indiferente, mas ainda com ar de incrédulo e jeito de quem falou por falar, respondeu, sorrindo, sem mostrar os dentes:

- Coincidência.


Publicado também na revista eletrônica Trema. Leia aqui, em 06/06/2021.

DEGUSTAÇÃO DE MAIS UM CAPÍTULO DE "O TESOURO PERDIDO DAS TERRAS DO SEM-FIM", A SER LANÇADO BREVEMENTE


Versão final da capa da nova edição, com ilustração de Jô Oliveira** e arte-final de Marcel


 E A TERRA ROLOU!*

  

Quando chegaram ao alto da ladeira, presenciaram um grande deslizamento de terra. Toda sorte de sapucaias, cajueiros e araticuns daquele lado do sítio haviam descido ladeira abaixo. Era terra que não acabava mais. A lama cobriu boa parte das novas plantações do cacau e foi parar na lagoa. Os meninos ficaram espantados com o escorregamento.

– Bem que painho falou que este lado era perigoso – disse Tati ao se deparar com o destroncamento da terra.

– O cacau não conseguiu impedir o deslocamento da terra. Essa terra é muito fofa. Deve ter acumulado muita água – Charlie falava como um geólogo experiente querendo imitar o pai que, além de ter se formado em geografia, havia se especializado em educação ambiental.

– Olha lá, gente! É o mico-leão! – sobressaltou-se Gambá. 

O mico-leão-da-cara-dourada estava preso a um dos galhos do araticum que desceu junto com o barranco, com as pernas e a cauda cobertas pela lama vermelha e um olhar triste, guinchando de dor. Charlie não pensou duas vezes, quis logo salvar o sagui.

– Temos que tirar ele de lá. A terra pode correr outra vez. Ele vai ser soterrado – precipitou-se para descer. Tati o segurou pelo braço.

– Está maluco, mano? Não vamos conseguir pegá-lo. É muito perigoso.

– Se a gente trabalhar em equipe, não! – e saiu procurando o cipó de uma das plantas trepadeiras que estavam enroscadas entre as árvores que caíram. A ideia era prender o cipó à sua cintura e descer o barranco. Quando encontrou, voltou dizendo: – Eu vou descer e vocês vão me segurar, igual aquele filme que a gente assistiu. 

“Que loucura! Menino inventa é coisa. Filme não é realidade, filme é ficção!”, alertara uma vez seu pai.

– Larga de bancar o herói, Charlie! – ralhava Tati.

– Você vai ajudar ou não? É a única chance de trazer o mico de volta.

– Droga! Por que eu fui ter um irmão tão teimoso? – e segurou o cipó de imbé com a ajuda de Gambá. Era o cipó de imbé que Vó Ninha gostava de usar para fazer cestas e passar o tempo quando visitava o sítio.

A chuva ficou ainda mais densa. O mico-leão chilreava cada vez mais forte. Tati começou a chorar. Estava tremendo de medo. Os relâmpagos haviam cessado, mas tudo levava a crer que eles logo voltariam. A água que escorria pela ladeira poderia provocar mais deslizamentos.

– Solta mais o cipó! – ordenava Charlie, se segurando como podia, entre troncos, pedras e o barro, enquanto descia. 

– Estou começando a ficar nervoso. Aliás, eu já estou nervoso. Meu intestino está revirando, eu vou soltar um... – Gambá levou uma das mãos ao abdômen. 

– Não! – berrou Tati, paralisando imediatamente Gambá. – Se soltar mais um dos seus terríveis puns, eu juro que painho vai ficar sabendo de tudo! E você, Gambá, vai pagar o pato!

– Que pato? Eu não peguei pato nenhum – largou o cipó. Charlie escorregou ladeira abaixo. Tati foi junto. Gambá, ao perceber o que havia feito, se esticou todo e conseguiu agarrá-la pelo pé esquerdo, bem na tira da sandália de couro, ainda se defendendo do tal pato. – Juro que não peguei o pato Pintado! Eu juro! Isso foi coisa daquela raposa velha. Não vou pagar pato nenhum!

– Não foi isso que eu quis dizer, seu bobão! Agora, tenta me puxar pra cima – dizia ela, quase gritando.

O pato Pintado era o chamego de dona Marita. Gostava de acordar os pais de Charlie às cinco da manhã para comer. Costumava ficar de vigia na cancela principal do sítio. Fazia o maior barulho quando um estranho se aproximava. Um dia, desapareceu misteriosamente. Gambá pensou que Tati estava culpando-o pelo desaparecimento do pato. Mas depois que Seu Guiga encontrou um monte de penas embaixo do galinheiro, deduziu que uma raposa velha que rodeava o sítio havia sido a responsável pelo sumiço de Pintado. Tati só estava querendo dizer que o grande culpado de toda aquela confusão era ele. Daí a expressão, “pagar o pato”.

– Parem com essa discussão! Vejam, eu peguei o macaco! Eu peguei o macaco! – exclamou, eufórico.

– Charlie pegou o mico-leão! – disse Gambá, largando Tati. Os irmãos desceram mais depressa em direção à lagoa. Gambá se desesperou. Os raios voltaram. Antes mesmo de o trovão vir em seguida, Gambá soltou outro pum insuportável: “Brummmmm!”

Charlie e Tati se agarraram aos galhos em meio aos destroços. Seus pés estavam a meio metro da lagoa. Naquela parte do espelho d’água, era comum o aparecimento de sucuris, as maiores serpentes da floresta. Vô João dizia que elas se amotinavam no capim alto que cobria aquela área, onde costumavam dormir e caçar. Ele mesmo havia visto uma daquelas enormes cobras engolindo um boi inteirinho na beira d’água, um não, três bois. Agora imagine uma cobra com três bois na barriga. Que tamanho não era essa cobra, hein? Foi num dia chuvoso como aquele.

– Joga o cipó, Gambá! – vociferava Charlie, tentando puxar Tati para a parte mais alta da árvore caída. Ele passou o mico-leão para ela. Em meio aos trovões, ouviram os berros de dona Marita e Seu Guiga procurando por eles. Tati começou a chamar pelo pai. 

– Estamos aqui, painho! Estamos aqui nos pés de cacau! – dizia ela.

Gambá puxou o cipó e arremessou na direção de Charlie. Mais troncos e terra começaram a descer, arrastando tudo que foi encontrando pelo caminho. Raios e trovões se intensificaram. Charlie amarrou o cipó na cintura de Tati e gritou para que Gambá a puxasse. Seu Guiga e dona Marita chegaram a tempo de ajudar Gambá a trazer Tati para cima. A copa de uma goiabeira cobriu Charlie, arrastando-o para a água. O pedido de socorro do menino se misturou ao barulho dos trovões. 

Seu Guiga, desesperado, acreditando que o filho se afogaria nas molhas da lagoa, desceu escorregando na direção do menino. Infelizmente não chegou a tempo de impedir que Charlie desaparecesse nas águas escuras da Lagoa Encantada.


*Trecho do romance infantojuvenil, "O tesouro perdido das terras do sem-fim", a ser lançado brevemente. Com apoio financeiro da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Ilhéus, Secretaria Especial da Cultura, Ministério do Turismo, Governo Federal, através do edital Arte Livre da Lei Aldir Blanc.

** Saiba quem é o artista/ilustrador Jô Oliveira clicando aqui.

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