“À sua estultícia o homem chama destino.”
Homero
FOI BENJAMIN DE GLÓRIA, um pouco antes do fatídico dia do seudesaparecimento, que relatou a Otavia- no de Maria a sova que o vaqueiro Januário deJandira deu, covardemente, na mulher. Disse também que Jacobina de Messias só não morreu porque foi salva por Givaldo, o filho do meio, que chegou no exato instante doacontecido e deu um tiro de espingarda no pai. Mas não matou.
Otaviano de Maria esperou o tempo do vaqueiro se re- cuperar do ferimento e dele mesmo sentir-se totalmente curado das moléstias. Os dois se encontraram por acaso - embora Benjamin de Glória tenha dito que aquele encon- tro havia sido marcado pelodestino - numa curva estreita da estrada de Coutos, na primeira hora do dia. Ali travaram uma peleja homérica, digna de uma Ilíada.
O carpinteiro voltava de uma caçada em Cururutinga, o vaqueiro ia com destino àfeira de Coutos. Ambos monta- vam a cavalo, usavam chapéu e estavam armados comuma espingarda de ferrolho. Pararam, um frente ao outro, se encarando, em silêncio.E ficaram assim um tempo, coisa de quase duas horas, estáticos, um esperando areação do outro. O vaqueiro gago, impaciente, quebrou a calada.
— Sempre desconfiei que você fosse um Empata Viagem.
Empata viagem foi o nome de batismo que os pescadores da Vila de São João da Barra do Pontal deram a um velho de vincos salientes no rosto e na parte posterior do pescoço que andava pedindo coisas e vivia embaixo de um tamarineiro monstruoso de mais de cem anos, na enseada. Se o viajante não oferecesse nada ao velho, ficava como perdido, dando voltas e mais voltas pela vila, empatando sua viagem. Só achava a saída quem deixava um presente para o velho. A entidade daenseada da vila sumiu no dia em que um coronel mandou derrubar a árvore. Quando o tamarineiro tombou ouviram um grito ensurdecer que veio trazido pelo sopro dovento do mar: “Vocês cortaram minha casa, seus pestes!”.
Otaviano de Maria conhecia a história e a entidade. Compará-lo ao demônio do Pontal deixou o carpinteiro muito irritado. Ele sacou da espingarda de ferrolho fun- gando e apontou para o vaqueiro.
- Matar sua mulher e o amante dela não foi suficiente? Quer mais sangue? — provocou o vaqueiro.
O carpinteiro não tirava os olhos do outro. Puxou o ferrolho da arma com asperezapara trás, manejando-o para dentro e para fora, abrindo o carregador. Do seu interior um estojo vazio foi ejetado. Ao invés de recarregar a es- pingarda com um novocartucho, jogou-a no chão, ao lado do cavalo.
— Por que a gente não resolve esta peleja no braço? — desafiou. — Ou o vaqueiroJanuário só é homem em cima de mulher?
Januário de Jandira viu na coragem de Otaviano de Ma- ria uma fraqueza. “Homem mais burro”, pensou. “Esta peleja acaba é agora”. Imediatamente, sacou da sua espin-garda acionando a alavanca que destravou o ferrolho da câ- mara. Abriu o carregador,pôs um novo cartucho, fechou a câmara e apontou a arma apoiando o cabo noombro direito. Em seguida, cerrou o olho esquerdo mirando no peito de Otaviano de Maria.
O carpinteiro riu. Riu gostoso. Januário de Jandira rela- xou, abaixando a arma, sem entender.
— Eita! Já vi vaqueiro gago, mas vaqueiro covarde ain- da não havia visto — disse. — A sua covardia não será esquecida, Januário. Será lembrado em Santa Maria como o homem que espancou a mulher e atirou em outro homem desarmado. Típico dos jandiras.
Os jandiras fundaram Santa Maria. Vieram das bandas de Porto Formoso, à barra do rio Ceará, montados nos lombos dos burros, fugindo da fome e das pestes que ca- íram sobre o Nordeste. Eram rudes, perversos, povo de pescoço duro, teimosos, ciumentos, ranzinzas. Outrora, ficaram conhecidos pelos atos de covardia, pelaidolatria, pela arrogância e o coração penoso. Januário de Jandira tra- zia no sangue odesprezo pelo outro, a soberba, a exaltação de si mesmo e os pequenos terafinsescondidos nos bolsos das calças, pendurados no cordão do pescoço, amarrados no pulso, nos tornozelos feito penduricalhos.
Na família, o mais perverso foi, sem dúvida, Antônio de Jandira, bisavô do vaqueiro, que guardava a fama de sacrificar animais indefesos desde a mais tenraidade. O avô de Otaviano de Maria, Sebastião de Martins, contou que o velho Antônio esquartejou um bichano aos cinco anos de idade. Pendurou o animal pelorabo e foi esfolan- do o bicho vivo. E daí não parou mais. Quem tivesse seus gatos naregião que os escondesse dentro de casa. O velho matava por diversão. Coisa do diabo,espetáculo macabro, natureza do cão.
Durante anos não se viu um felino de Santa Maria a Coutos, de Cururutinga aAreia Branca, do Japu ao distrito de paz de Olivença. Uma vez, numa dessas noites sem lua, o velho saiu para caçaros felinos, na região de Areia Branca. Foi perseguindo um gato preto, magro, de coleirabranca, que miava assustado. Sem perceber, chegou a uma casa de farinha, no dia emque tinham torrado umas cinco sacas. O chão da casa estava forrado de cascas demandio- ca que os homens e as mulheres deixavam para os bichos da noite comer. Ovelho, excitado, cercou o bichano perto do forno. Os olhos do gato brilharam noescuro, atônitos. Ele engatilhou a arma e mirou bem no meio da testa do animal. Puxou o gatilho. A arma atravancou, o tiro não saiu. Antônio de Jandira foi conferir.Recebeu de um vulto um tapa do lado do rosto que lhe arrancou a orelha direita e aaudição. Caiu de costas, atordoado. Tentou se levantar e outro tapa, que veio de outro vulto da noite, decepou a outra orelha. Desfaleceu. No outro dia, foi encontrado pendurado pelos pés, sem pele e sem cabeça, acima da co- mida dos demônios da noite.
— Eu não tenho medo de você, seu merda! – desfez a mira, guardou a espingarda epulou do cavalo, numa agili- dade impressionante, como só os vaqueiros sabiam fazer.
— E então, vai ficar aí ou vai descer e me enfrentar, filho de ladrão.
Otaviano de Maria engoliu a acusação em seco. Seu pai, o boticário deCoutos que ensinou o ofício ao pai de Apolinário de Helena, foi preso e condenado aquinze anos de cadeia por participar de um roubo a uma casa de penhores em Ilhéus.No dia em que morreu, confessou ao filho que era inocente.
O carpinteiro, taciturno, indiferente à tradição, desceu pelo lado direito do cavalo eficou em pé, esperando. Não estava com medo, nem ansioso. Mas sentia que aquela que- rela com Januário de Jandira precisava ter um fim. Foi guiado por suas memórias à infância em meio a uma briga que os dois protagonizaram pelaprimeira vez por causa de um bodoque, feito de um galho de araçá forquilhado. O meni- no Otaviano escondeu a atiradeira por três dias para impe- dir que o menino Januáriomatasse as galinhas de angola e os filhotes de patos dos vizinhos. No quarto dia,Januário foi buscar o bodoque. Otaviano disse que não entregava. Os dois terminarambrigando na rua, em frente à casa do carpinteiro. Januário de Jandira saiu com umolho roxo e vários arranhões, mas voltou com a atiradeira e venceu a briga. Otaviano entrou em casa com duas mordidas nas costas e o peito roxo dos socos que recebeu eainda levou uma surra do pai.
Pelejaram ainda muitas outras vezes nas brincadeiras com estafetas e nos jogos de puxar e empurrar, sobretu- do, quando Januário perdia. Na adolescência, o vaqueiro disputou o amor de Jacobina de Messias. A menina amava Otaviano, que fingia nãosaber, e Januário amava Jacobina de Messias que no início não quis nada com ele. Sóquando Otaviano se casou com Marinalva de Leite, a menina resol- veu dar uma chanceao jovem vaqueiro.
Januário de Jandira não era alto nem baixo. Mas tinha uma cabeça grande, como todos os emigrantes de Porto Formoso, cabelos de cachos apertados e barba rala. Os braços eram compridos e carnudos que lhe davam certa vantagem ao puxar a caudados bois fujões com raiva nos descampados e nos pátios das fazendas, forçando aque- da do bicho, provocando-lhes fraturas nas patas, traumas, luxação na cauda equase sempre gerava uma amputação. De tanto montar a cavalo, as pernas ficaramtortas, como a forquilha da atiradeira pela qual eles brigaram. A anomalia lhe davatambém a aparência de um homem atarracado.
Otaviano de Maria era alto e forte, da cintura para cima. Do umbigo para baixo possuía as pernas finas e compridas e uma bunda tísica, chupadaque nem uma tábua rasa de tanto ficar sentado lixando, polindo, envernizando as ma- deiras que se transformavam nas peças mais criativas do povoado. Nas mãos, asmarcas dos artefatos que inventou, os calos e as cicatrizes, e a ausência da metade de umdedo da mão direita. Ossos do ofício. Ofício que aprendeu com mestre Ambrósio deJoana. Não havia em Santa Maria e boa parte da região de Coutos uma só casa que nãotivesse uma peça produzida pelo carpinteiro.
— Você é um homem amargoso, Januário — disse Ota- viano de Maria, fechando asmãos com firmeza, sobrepon- do o dedão sobre os demais dedos, deixando os pulsos retos. — Mas sei também que é um homem de palavra.
O carpinteiro disse mesmo uma verdade. Ainda se hon- rava a palavra no povoado.Mesmo que ela tivesse vindo de um jandira. Declarar que o vaqueiro cumpria o quepro- metia não foi um elogio, foi uma tentativa de trazer à tona uma tradição que jamaisfoi negligenciada em toda a histó- ria de Santa Maria.
— Se eu vencer esta briga, nossas diferenças terminam aqui. Voltaremos para casa, eu e você, sem rancor — e estendeu a mão para apertar a do outro. — Temos um acordo?
Januário de Jandira hesitou. O carpinteiro ficou com a mão direita estendida, nadireção do vaqueiro.
— Temos um acordo?
Januário de Jandira juntou as sobrancelhas, encolheu os olhos e esticou a mão, comaversão, para devolver-lhe a saudação. Tentou dar um aperto tipo esmaga ossos e puxar com força o carpinteiro para perto de si, como que estivesse no controle dasituação. Mas Otaviano de Maria conhecia bem aquela saudação controladora. O vaqueiro não teve êxito em sua investida.
— Sim... — titubeou. — Temos um acordo.
— Então também temos uma peleja! — disse ligeiro e esticou o braço para trás edepois para frente com a mão bem fechada para não se machucar quando atingiu ova- queiro com tudo no meio da testa, pegando-o de surpresa. Era uma testa mais largaque a testa de Rubião, esperando a pancada.
E aquele golpe foi o primeiro canto, do primeiro ato da grande peleja, na quarta hora do dia.
Januário de Jandira cambaleou para trás, mas não caiu. Recuperou-se num únicofôlego e partiu para cima do car- pinteiro, tal qual partia para cima de um bezerro. Osdois se atracaram. O vaqueiro segurou firme na gola e no bra- ço esquerdo docarpinteiro e tentou com a perna esquer- da fazer um gancho por trás da perna do outro. Os dois acabaram caindo por cima do capim-carrapicho e rolaram uma pequenaribanceira, passando por cima de um amon- toado de estacas de eucalipto, prontas paraum cercado. Os cavalos se aproximaram da descida íngreme para assistir à peleja. Otaviano de Maria tentava prender o braço do vaqueiro entre as suas pernas,esticando o braço de Janu- ário de Jandira para trás. O cavalo do vaqueiro relinchou como se dissesse: “Vai quebrar o braço de Januário”. No entanto, o vaqueiro sedesvencilhou e jogou suas pernas sobre o carpinteiro, prendendo a cabeça e opescoço, es- trangulando-o. Ficaram nesta posição muito tempo, mas o vaqueiro nãoconseguiu sufocar de uma vez o carpinteiro que combatia, se debatendo, tentandoarrancar os braços do opositor.
Com as duas mãos livres, Otaviano de Maria conseguiu segurar num dos punhos dovaqueiro. Girou rápido e com força virou a palma da mão do vaqueiro para cima, torcendo o braço. Januário de Jandira resmungou, sentindo dor. Não suportando a investida, afrouxou as pernas. Otaviano de Maria escapou do gancho e com a outra mão, meteu seu braço por cima do braço do vaqueiro, virando-o de bruços. Dominado e com o peito e o rosto para baixo, o carpinteiro abraçou o pescoço do vaqueiro com a ajuda do seu próprio braço e pressionou seu peito nas costas do outro. Otaviano de Maria de estrangulado, passou a estrangular, sofreando o vaqueiro. E este empuxo deu início ao segundo canto, do segundo ato, na sexta hora do dia.
Januário de Jandira, imobilizado, foi ficando roxo com a língua saindo entre os dentes.Seus olhos fitavam o infinito, lacrimejando. No meio do mato ele viu um vulto corren-do na sua direção. Grunhiu, engasgando-se. O carpinteiro manteve-se firme, semafrouxar o braço e a pressão do pei- to sobre o outro. O vaqueiro tentava inutilmentediminuir o estrangulamento. As costas ardiam, os olhos ardiam, a cabeça queimava elhe faltava o ar. O vaqueiro foi escurecendo as vistas, entregando-se, pouco a pouco.Ao sentir que poderia provocar uma tragédia, Otaviano de Maria lar- gou Januário de Jandira.
Os dois ficaram deitados de lado, no chão, olho no olho, resfolegando. O sol a pino,queimando o juízo, estourava a cabeça. Os cavalos impacientes, sentido sede edesejando o fim do combate, relinchavam. O capim-carrapicho feria a pele. A lutaatraiu outros bichos, curiosos, inquietos, ob- servando a peleja dos outros bichos que andavam sobre duas pernas e reinavam sobre eles.
Otaviano de Maria ficou de joelhos. Januário de Jandira também. O vaqueiro não deu sinais de que desistiria da luta. Ficou de pé, com os braços dobrados, em posiçãode defesa, pronto para mais um duelo. Otaviano de Maria fez o mesmo, esperando ogolpe do vaqueiro. E esta posição marcou o começo do terceiro canto, do terceiro ato, na sétima hora do dia. Um cantode ofensas e lamúrias.
— Eu ainda desejo ver muita coisa, Januário.
— Está com medo, corno!
— Esta peleja não vai acabar bem.
— E quem disse que eu quero que ela acabe bem? Hoje, você ou eu vai desencarnar deSanta Maria. Um de nós dois não vai ver a próxima lua nova.
— Você fala como se tivesse a certeza das coisas. É um homem estúpido.
— E você é um corno, covarde!
— Covardes são aqueles que privam os filhos de co- mer e castigam mulheresindefesas com um chicote. Esses também são homens de espírito fraco. De onde vemtanto desafeto, tanta amargura, tanta dor?
— Pare de se defender com palavras, seu boca-mole! Filho de trapaceiro, filho debandido! Pare com essa prosa sem rumo e lute, lute como um homem, corno!
Duas estacas de eucalipto escorregaram até o pé da ribanceira e foram parar, cadauma, ao lado deles. As esta- cas, de uns dois metros de comprimento, tinham as pontas afiadas, como duas enormes lanças. Foram postas ali pelo demônio da mata, o vultoque o vaqueiro viu quando per- dia o fôlego, que também veio ver a peleja, com seusalia- dos, ao sentir o cheiro de sangue e de morte.
Januário de Jandira agarrou a primeira estaca. Otaviano de Maria, para se defender, segurou a segunda. E assim se deu o quarto canto, do quarto ato, na oitava hora do dia. Ambos, segurando as estacas do lado oposto da ponta afiada, com as duas mãos,como agarrados ao cabo de uma espada medieval. O vaqueiro golpeava no lado direito e depois no lado esquerdo das pernas, no tronco e por cima da cabeça subindo e descendo como um portão e o carpinteiro ia expulsando a estaca-espada do oponente para baixo, para o lado, para cimae contra-atacava lançando a estaca-espada para o chão em dois tempos.
Januário de Jandira ergueu a estaca com um passo à frente, apoiando-se com umpé atrás e arremeteu com toda a força que lhe restava sobre Otaviano de Maria. O carpinteiro não recuou e se defendeu segurando a sua esta- ca-espada com as duas mãos eos braços abertos. E ficaram assim, atacando e se acastelando, se protegendo e se agre- dindo até a décima hora do dia quando, finalmente, exaus- tos, se acertaramsimultaneamente com uma estocada por trás da cabeça que quase rachou o crânio. Osdois caíram de peito para cima, sobre o mato, com a boca aberta que nem gato vomitando bola de pelo, querendo recuperar a fuga do ar e sentindo o cheiro forte dosangue que jorrou. Permaneceram assim, um tempo, dois tempos, três tem- posdeitados como dois barbatões sem conseguir se levan- tar, após serem derrubados. Havia muitos barbatões nas festas de apartação em Areia Branca, porque as fazendas não tinham cerca. Januário de Jandira e um bando de va- queiros saíam para buscar osbois que se misturavam com os das fazendas vizinhas. O barbatão era aquele boi que fugia do gado, afrontando o chamado do vaqueiro. Resul- tado: era perseguido ederrubado pela cauda. Januário de Jandira, aos quinze anos, ficou afamado pelasderrubadas e pelas pegadas de boi que fazia.
***
Décima primeira hora do dia. No inverno, a noite chega mais depressa, as aves dormem mais cedo, os bichos da noite se alvoroçam para caçar. Cada bicho, cada ave,tem seu horário certo. Não avançam, não recuam, não comem na hora errada. Os homens não são como os bichos, comem quando querem comer, bebem quando querem beber, matam quando querem matar, dormem quando querem dormir e brigam quando querem brigar. Não importa se a primeira ou a última hora do dia, se é a primeira ou a última vigília da noite.
Ficaram mais uma vez de pé, cambaleantes, mas, eretos. De um pegador de boi podia se esperar uma derrubada, um laço, um golpe por trás. Se projetaram para o lado, em círculo. Um para a esquerda, o outro para a direita, os bra- ços esticados e abertos, quenem garras de caranguejo. Por isso Otaviano de Maria redobrou a atenção, foipaciente, esperou o ataque, não abriu a guarda, porém, cometeu um erro. E o desacertoselou o quinto canto, o quinto ato, no lusco-fusco do fim de inverno de um dia que seentregava a uma noite quase sem lua a testemunhar a peleja do vaquei- ro valente e o carpinteiro sem mágoa.
“Homem não peleja de perna aberta”, a advertência veio do avô, Sebastião deMartins, ao ensinar os primeiros golpes de uma galhofa, uma luta corpo a corpo antigade sua terra natal que os portugueses também chamavam de maluta.
— Você tem que derrubar seu inimigo e mantê-lo no chão. Lute sem camisa, paraque seu opositor não te agarre e te derrube primeiro.
E deixou-se levar pelos pensamentos e por aquele dia em que aprendeu a lutar com seu avô ao completar dez anos de idade. A distração foi suficiente para que ovaquei- ro lhe atingisse um chute sem dó, no meio dos colhões, com o peito do pé dasua força, como se fosse uma mace- ta. O instrumento que ele usava para esmagar ostestícu- los dos bois que precisavam ser castrados. E, por ironia, a mesma ferramentaque o carpinteiro usava para modelar e esculpir a madeira. Otaviano de Maria levou as duas mãos instintivamente aos ovos,tentando impedir um novo ata- que. Mas o estrago já estava feito. O carpinteiro caiu de joelhos, gemendo. O vaqueiro saltou sobre ele, como um leão faminto, abatendo asua presa. Sem forças, foi contido e novamente estrangulado.
— Mas se você for dominado, Otaviano — recordava, — não se desespere... espere... seja paciente. Deixe seu ini- migo acreditar que venceu aluta. E só assim, sentindo-se vencedor, ele irá abrir a guarda e você irá virar o jogo.
Otaviano de Maria aprendeu a lição. Desfaleceu como um preá do mato, esticandoos braços e as pernas em to- das as direções, convulsionando e sacudindo o corpo ao mesmo tempo, simulando a própria morte. A tremedeira e a gosma esverdeada quevomitou assustaram o vaqueiro, fazendo-o diminuir a pressão no pescoço docarpinteiro. Foi a folga necessária para que pudesse esticar os braços, agarrar a cabeça de Januário de Jandira e impulsioná-lo para a frente. O vaqueiro caiu de barriga paracima. Com o impacto, fraturou uma costela e deslocou o ombro esquer- do. A luta terminou.
— Estou... morto — disse Januário de Jandira.
— Eu também.
O vaqueiro emudeceu. Quando respirava fundo, sentia dor. Ficou inspirando eexpirando como um zumbido, sem se mexer.
— Agora nós temos um trato – era Otaviano de Maria. O carpinteiro ajudou ovaqueiro a se levantar, sem pressa.
— Se você cruzar comigo outra vez, Otaviano, e vier pela direita, eu irei pela esquerda. Se você estiver subindo, eu descerei. Não vou te perdoar. Mas nosso acordo está selado.
— De minha parte, vaqueiro rabugento, não haverá rancor.
— Pois da minha, não posso lhe dizer o mesmo.
— Minha mãe me disse uma vez que se você guardar a mágoa, nunca conhecerá a paz.
Januário de Jandira emudeceu de novo. Os insetos anunciavam a noite.
— Nem a peste de um candeeiro para iluminar a estrada – murmurou o vaqueiro.
O carpinteiro começou a rir. Riu de tudo.
— Não entendi a piada.
— Me passou pela cabeça que, se você morrer primeiro do que eu, vou te chamar de candeeiro.
— Candeeiro? Que apelido mais besta!
— Você vai precisar de um quando chegar ao inferno.
Subiram o barranco rindo, com o vaqueiro se apoiando no outro. Otaviano de Mariaajudou Januário de Jandira a subir no cavalo, com dificuldade, reclamando feito um ve- lho embirrento. O carpinteiro entendeu que o fim da peleja merecia um verso.
Vamos cessar a contenda
Que andamos nós pelejando:
Ou me amas de uma vez,
Ou prometes me ir amando.
— Enfia esta poesia no cu do teu pai.
Otaviano de Maria gargalhou bonito.
— Vai-te embora, bicho bruto.
— Adeus, fio-de-maria-mais-eu!
(CIDADE, Pawlo. O Colecionador de Lembranças,
pp. 149-161, Editora TPI, 2022).