domingo, 23 de agosto de 2015
AS DOCES AMARGAS MEMÓRIAS DE PEDRO E ALICE
PEDRO
O poeta profetizou. Aquela
poesia do coração despirocado foi sinistra. Ele acertou na mosca! E eu achando
que havia exagerado ao confessar que ela beirava a insanidade. Perder a
virgindade num porão imundo de um auditório escolar em plena atividade
pedagógica, especialmente na hora do intervalo é no mínimo pirraça, doidice, excentricidade,
delírio! Falta adjetivo para compreender a proposta indecente e estapafúrdia
que a louca da Alice me fez.
“Então
me faça mulher aqui. Agora!”
Deus do céu! Será que ainda
eu tenho idade para viver experiências intensas que transformem meu coração
numa verdadeira bateria de escola de samba? Quando se é adolescente ou um jovem
à beira dos 20 anos você ainda se aventura meia-noite numa estrada deserta sem
medo de ser assaltado. Você é capaz de quebrar regras sem se preocupar com as
consequências. Afinal, você só tem 20 e um mundo inteiro pela frente para
corrigir as burrices que você cometeu. Aos 20 anos você é capaz de emendar a
balada da noite anterior com o trabalho da manhã seguinte às 7 horas. Pode
dormir o dia inteiro e virar 1, 2, 3 noites no carnaval e na quarta noite ainda
ter fôlego para pegar o cinema com aquela gata que você vem tentando ficar há
um tempo.
Aos 20 anos, ou quase 20, seus amigos são como
uma família incrível. Vocês criam dezenas de coisas juntos, são cúmplices,
escondem os segredos uns dos outros, cobrem as mentiras, farreiam juntos, tomam
banho juntos, dançam juntos, criam coreografia e gritos de guerra e todo mundo
namora junto.
Quando se chega à casa dos
30, a história é diferente. As decisões que você toma podem significar sua
vitória ou derrota, independência ou dependência, prisão ou liberdade. Um mundo
de escolhas que não lhe dá tempo, condições ou possibilidades. E daí? A vida
não é minha? Quer dizer que eu não posso mais viver perigosamente, tomar banho
nu na praia em noite de lua cheia, brincar de pega-pega com a mulher que eu
amo, fazer castelos de areia, beijar embaixo da chuva, transgredir a lei, pular
a cerca, subir num pé de coco, quebrar o telhado do vizinho, abrir os braços no
meio da rua e dá um grito de felicidade, namorar no banco da praça, chupar
sorvete de framboesa com flocos de brigadeiro, ouvir Down Under, da banda australiana Men at Work, mais alto que um trio elétrico e ainda fingir que toca
guitarra?
Infelizmente, como diz o bom
senso: Nem tudo que eu quero eu posso.
Nem tudo que eu posso eu devo e nem tudo que eu devo eu quero. Seu caráter lhe
dirá o que você quer, o que você pode e o que você deve. E, naquela estação,
aos 33 anos de idade com uma carreira se solidificando, carro seminovo, emprego
garantido, um pouco de dinheiro no banco e solteiro eu queria Alice, eu podia
ter Alice e eu acreditava no fundo da minha alma que pertencia a Alice.
As doces amargas memórias de Pedro e Alice, de Pawlo Cidade. Inédito.
sexta-feira, 31 de julho de 2015
CRÔNICA DE CADA DIA
Imagem meramente ilustrativa da web
ATÉ QUE A MORTE NOS UNA
Pawlo Cidade
“Hoje em dia o divórcio é inevitável, não dá para escapar. Ninguém aguenta
conviver com a mesma pessoa por uma eternidade. Eu, na realidade já estou em
meu terceiro casamento – a única diferença é que casei três vezes com a mesma
mulher.” Enunciado assim é difícil crer que os casamentos de hoje durem tanto
tempo. Há quem diga que os casamentos de outrora duravam por dois motivos: medo
de ficar sozinho ou religião. Acrescente-se a isso a infidelidade. Aperitivo
que permitia ao homem – e raramente a mulher – pular a cerca, mas continuar
casado com a mesma parceira. “Em casa, tenho comida, roupa lavada e limpeza, na
rua tenho o que minha mulher não me dá.” Célebre frase de um sem-vergonha
machista que sentia a necessidade de uma escrava do lar, não de uma esposa.
Pois bem, finda a premissa (o mesmo que teoria, o conteúdo, a informação
essencial que vai servir para escrever esta crônica) a partir da opinião de
Arnaldo Jabor sobre a duração dos casamentos contemporâneos, me vem ao
pensamento a lembrança de Seu Eurico e Dona Eulália, que, recentemente
completaram bodas de diamante. “Qual o segredo?” - Pergunto. E ele, na
simplicidade de suas palavras, no gesto terno de sua paciência, balbucia:
“Respeito.”
Como um memorialista apaixonado narra pausadamente o dia em que, sentado
na enseada do Pontal, de frente para a baía, conheceu aquela que seria sua
amante até que a morte os separasse. Eulália era filha de pescador e Eurico, um
jovem engenheiro, contratado para construir a ponte que ligaria a vila de
pescadores ao centro da cidade. Ali, embaixo da jindiba, árvore que é símbolo
das lembranças do personagem Caúla em “Luanda Beira Bahia”, de Adonias Filho, Eurico
e Eulália trocaram o primeiro beijo, numa tarde ensolarada de maio.
“Respeito.” - Repetiu o octogenário construtor de pontes que soube,
tijolo a tijolo, erguer a difícil arte do relacionamento a dois. “E o amor, ele
não é fundamental?” Indago de supetão como que quisesse afirmar que o amor e
respeito não podem viver separados. “O amor é cúmplice! Ele é também
construído, lapidado, melhorado e ampliado um dia após o outro. Se você não
entende isso, se você não enxerga isso, acabou o respeito,” confessa o
engenheiro. E eu me pego pensativo, testemunhando o exemplo e de quanto ainda
precisamos melhorar para ser, pelo menos, um terço do que foi a vida de Eurico
e Eulália.
Na véspera de completar 61 anos de casados, Eurico e Eulália partiram. A
morte não foi capaz de separá-los. O encontro se deu para ambos. Foram
encontrados, em seu leito, abraçados, como costumavam dormir. Quis o destino,
uni-los na juventude e na maturidade; na saúde e na doença; na alegria e na tristeza,
na vida e na morte.
Julho de 2015
terça-feira, 28 de julho de 2015
CRÔNICA DO DIA A DIA
GATO POR LEBRE
Pawlo Cidade
Se você
perguntar na Avenida Esperança onde fica a Rua Esperanto Perolato as pessoas
vão erguer os sobrolhos e achar que você deve ter lido o endereço errado.
Outros darão risada e alguns ainda vão repetir “Esperanto o quê?” Mas se você
disser: “Rua do Cano”, todo mundo vai saber onde fica. E o nome que ficou na
boca do povo, porém, algum vereador do passado na esperança de estar “prestando
um (de)serviço à comunidade” apresentou um projeto de Lei que a batizou de Rua
Esperanto Perolato. Nada contra o esperanto, esta língua artificial inventada
por um médico judeu que não preciso citar o nome agora senão vocês vão acabar embrulhando
a língua. Ah não ser que o nome faça jus ao significado real da palavra: “o que
espera.” E é assim que vive o povo da Rua do Cano – digo “Esperanto”,
esperando. Esperando tapar os buracos, asfaltar a rua, melhorar a iluminação
pública, enfim!
Passada a
introdução geográfica, cabe-nos chamar a atenção para um personagem conhecido
do pedaço, que antes mesmo da venda do seu Zé abrir, às seis e meia da manhã,
ele está lá, de prontidão, disposto a tomar o café-de-um-gole-só com a
branquinha de sua preferência. Na desculpa de comprar o pão das crianças,
Bigode já entrava no estabelecimento esticando os dedos e brindando o dia: “Seu
Zé, a de sempre!” E Zé, dobrando a cabeça e curvando os lábios, pegava a
garrafa de 51, no canto da prateleira, e enchia com uma única dose o pedido do freguês.
Fosse esse
apenas o defeito – ou seria vício? - de Bigode. É bem verdade que nunca se tinha
visto ele deitado na calçada ou jogado numa vala, guardado pelo seu fiel
escudeiro “Bronze”, uma mistura de cachorro salsicha e vira-lata, que o
acompanhava nas escapadas noturnas e nas goladas matutinas da branquinha.
Bigode, certa feita, bebendo todas e comendo com farinha, se engraçou com uma
loira top-de-linha, pernuda, quadril arredondado, lábios carnosos. Os colegas,
percebendo a paquera do amigo resolveram colocar lenha na fogueira. E a loira,
com aquele largo sorriso de quem vem-que-eu-sou-tua caiu na lábia de Bigode. Seu
Zé, amigo de infância e dono do bar, até tentou cutucar o outro pedindo que não
se metesse com a mulher dos outros. Bigode, travado, perguntou se o bodegueiro
estava com ciúmes, pois perder aquele avião seria o mesmo que perder um bilhete
premiado da loteria.
A única pulga
que deixou Bigode com a orelha em pé – mas também que se dissipou rapidamente –
foi a de que ninguém mais deu em cima da loira. Só ele. Como podia? Uma loira
linda, pernuda, gostosa, dando sopa e ninguém interessado? Só ele via aquilo?
Não! Que nada! Barbudo, carpinteiro experiente tranquilizou o amigo: “A mulher
é sua, Bigode. Você viu primeiro.” E mal teve tempo de completar a frase,
Bigode estava do lado da loira, fungando no cangote. Zé Pedro, eletricista dos
bons, solteiro, que morava num barraco na subida do Alto da Esperança ofereceu
logo a chave para a quebrada. Bigode não contou conversa. Enfiou a chave no
bolso, piscou para o amigo e saiu arrastando a loira para o matadouro.
Nem bem entrou
no barraco, Bigode apertava a loira como se aperta uma aliança. Era beijo de um
lado, cheiro do outro, lambida na orelha. Um grude! Aquela altura ele gritava a
cada passo do caminho que a amava, que ela – a tal loira - era o amor da sua vida.
Bigode - não se sabe se tonto por causa da branquinha ou encantado com a
mulher, não acertou abrir a porta do barraco. A loira, prevenida, tomou a chave
do outro, meteu na fechadura e abriu. Bigode foi empurrando ela como se aqueles
fossem os momentos finais de sua conquista. A loira agarrou Bigode pelos
braços, com uma força que ele estranhou e disse: “Calma!” Bigode deu um passo
para trás e esperou o desenrolar do acontecimento. Mal sabia ele que a turma,
que o acompanhara no bar, estava de ouvido grudado na porta do barraco,
querendo saber o que estava acontecendo.
A loira, mais
uma vez cuidadosa, sentou Bigode num tamborete, e deixou-o na posição de
espectador. Em seguida, afastou-se, tirou a roupa, lentamente, subiu na cama e
ficou na posição de cachorrinho. Bigode arregalou os olhos, suou frio, engoliu
a saliva, ergueu as sobrancelhas e uma tremedeira tomou-lhe conta das pernas. O
arapapá da loira mais parecia uma manjuba. “E aí?” A voz da loira ficou mais
grave. Bigode olhou para um lado, olhou para o outro, respirou fundo e pensou
consigo mesmo: “Se não tu, vai tu mesmo.” E os companheiros, do lado de fora do
barraco, tentando encontrar uma fresta ou ouvir os gemidos que vieram do quarto
da casa de Zé Pedro, apelidaram Bigode naquele dia de “Gato por lebre.”
Julho de 2015
segunda-feira, 18 de maio de 2015
CRÔNICA DO DIA-A-DIA
CATA NICA, MISERÁVEL!
Pawlo
Cidade
Cata nica,
pinga pinga, coletivo, bus, lata velha, buzú! Ele pode ter vários apelidos,
mas, a verdade é uma só: Sujeira, poltronas quebradas, cigarras que não
funcionam (Pára aí, motorista!), horários desgovernados, linhas mal atendidas,
motoristas estúpidos, cobradores e cobradoras mal humoradas, passagem cara!
Peraí, e nada
se salva? Claro, toda regra tem exceção. Tem aquele que pára para a moça
bonitinha no ponto, que varre o veículo no ponto final, que passa flanela nas
poltronas molhadas quando a chuva pega todo mundo de surpresa; o condutor que
dá bom dia, boa tarde, boa noite. E é só.
Hora do pico,
confusão, empurra-empurra, rala-rala: “Oi, minha bolsa!” “Empurra não, p.!”
“Peraí, véi!” “Respeita a senhora, aí, cara!” Quem entra primeiro, senta. Os
mais solidários pedem as mochilas para segurar, os livros para apoiar no colo,
a bolsa pra ninguém ficar mexendo por trás. E de, ponto em ponto, entra mais
um, mais dois, mais três, mais dez. “Já tá bom, motorista! Segue essa m.!” E a
viagem segue, com cheiro, sem cheiro. Que ninguém se atreva a liberar um gás.
“Deus é mais!” “Vai timbora, carniça!” “Creem-Deus-pai!”
Estudantes
irritados na ida para a escola. Estudantes zoando na volta para casa. Foram tão
oprimidos no dia-a-dia que a hora da volta é a hora de extravasar, de gritar,
de berrar, de cantar: “Se eu fosse um cachorro, minha mãe seria uma cachorra e
eu seria um cachorrinho! Lá, lá, lá, lá!” Cobrador furioso, motorista irritado.
Freio de arrumação. “Tá levando boi, miserável!” “Não é sua mãe que está aqui
não!” E a melodia estudantil ecoando do fundo, em ritmo de arrocha: “Se eu
fosse um gato, minha mãe seria uma gata e eu seria um gatinho! Lá, lá, lá, lá!
Quem aguenta? Ladainha, pirraça, barulho no pé do ouvido? A senhora gorda,
perto do motorista, bufando e soando ao mesmo tempo. Não sabia se descia no
próximo ponto ou se brigava com os meninos lá no fundo.
“Se eu fosse
um cavalo, minha mãe seria uma égua e eu seria um cavalinho! Lá, lá, lá, la!” A
esta altura, o cobrador já “p” da vida resolve acabar com a farra estudantil e
grita para todo passageiro ouvir: - Se sua mãe fosse uma puta?
E a turma,
esperta, podia até perder a briga, mas não perdeu a oportunidade de entoar uns
versos que deixou o cobrador com cara de tacho: “Se minha mãe fosse uma puta,
meu pai seria um corno e eu seria cobrador! Lá, lá, lá, lá!”
Pensa que o
fato não foi aqui? Ou que o cenário é apenas uma crônica do dia-a-dia? Triste
engano. A pirraça é na linha do Salobrinho, do Vilela, do Basílio, do Iguape...
Ainda bem que
na vida tudo é passageiro. Exceto, cobrador e motorista.
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