segunda-feira, 17 de maio de 2021

O POVOADO DAS ONZE MIL VIRGENS - CAPÍTULO 2: "A PRESSA DE MESTRE VIRGÍLIO" E CAPÍTULO 3: "A CHEGADA DOS PEIXES-VOADORES"

 A PRESSA DE MESTRE VIRGÍLIO

 

 

Seu Ananias levou quase meia hora decidindo se colocava o banco a leste ou a oeste do Monumento. Não sabia se o mais bonito de se ver, no espetáculo que estava por vir, seria a chegada ou a partida. Quem registrou esta indecisão de Seu Ananias foi Mestre Virgílio, que, mesmo andando a passos largos, como se quisesse vencer o vento gelado que soprava do Monte, não passou despercebido pelo velho carpinteiro. O mestre retardou os passos e esgueirou-se por trás de uma lixeira. Quando, por fim, se afastou sorrateiramente, quase em silêncio, aproveitando a oportunidade em que o carpinteiro ficou de costas, preocupado com a melhor posição do banco na praça, “o homem que tudo vê”, não perdeu a chance de berrar: 

- Pressa venturosa, vagar desastrado!

O provérbio na ponta da língua soou como um presságio e pegou Mestre Virgílio de surpresa. A resposta do passante quase saiu, mas ele sequer a balbuciou. Preferiu engolir em seco sem deter o passo. Apenas baixou a cabeça e acelerou ainda mais as passadas como um gnu à frente de sua manada. Seu Ananias inspirou profundamente, deu de ombros, coçou a testa envelhecida e, como se já soubesse o destino do Mestre Virgílio, vaticinou:

- É cousa! 

Se havia uma coisa que deixava todo morador de Onze Mil Virgens com uma pulga atrás da orelha, morrendo de preocupação, desconfiado, suspeitando, conjeturando, e todo o mais que o significado desta expressão pudesse exprimir, era quando Seu Ananias exclamava: “É cousa!”. A frase exclamativa que mais parecia uma afirmação sempre vinha carregada de uma ou de outra certeza: a de que o indivíduo escondia alguma coisa ou alguma coisa estava prestes a acontecer com o indivíduo. E isso fazia de Seu Ananias não apenas o homem que sabia de tudo, mas o carpinteiro que adivinhava demais! E adivinhar demais suscitava comentários, que quase sempre saíam da boca de Isaura Cornejo, “A mulher do marido que ninguém vê”,  e atual presidente da Confraria dos Letrados, que dizia aos quatro cantos do povoado que:

- O velho tem parte com o diabo!

Se a adivinhação era uma benção ou uma maldição na vida de Seu Ananias, cabia ao povo de Onze Mil Virgens decidir. O fato é que o agulhão-vela do atlântico, o gnu das savanas – um fato extraordinário para um homem que beirava os noventa anos de idade - com seus passos largos e rápidos, corpo esguio, pernas de girafa, finas e longas, em direção ao Monte da Febre, carregava uma pá com cabo de jacarandá. Na cintura, um embornal de couro consumido pelo uso, carregado de ferramentas de entalhe e uma faquinha curta, de cabo de osso, ao lado de um pequeno envelope, impregnado de capim seco, com um segredo guardado há cinquenta anos.

 

 

Ilustração de Jô Oliveira



A CHEGADA DOS PEIXES-VOADORES

 

 

Seu Ananias finalmente se sentou no banco. O sol foi despontando por trás do Monte da Febre, às cinco e trinta e cinco da manhã. Concomitantemente, os peixes-voadores surgiram numa grande nuvem, tal um bando de gafanhotos, estridulando, como  um som agudo mais alto estalado de uma nota de viola. As pessoas foram saindo de suas casas, crianças pulavam pelas janelas, se divertindo com o barulho estridente da migração. Um fenômeno único, que durava exatos quarenta e cinco segundos. Tempo suficiente para percorrer os quatrocentos metros entre o salto do Rio Vermelho, a Praça da Igreja Matriz, e voltar novamente ao Rio Vermelho. Os peixes evitavam a barragem que ficava na bifurcação da corrente e a vegetação de aguapés e capões do mato. O rápido sobrevoo no céu do pequeno Povoado das Onze Mil Virgens era um espetáculo do outro mundo. Não havia sequer um morador do povoado que soubesse responder por que aqueles peixes magníficos, acostumados a viver nas águas quentes das regiões tropicais e subtropicais dos oceanos, escolhiam aquela trajetória para voltar ao Oceano Pacífico. A visita dos peixes-voadores para uns, era o sinal do fim dos tempos; para outros, a chegada das boas novas.

A fantástica e inusitada migração dos peixes-voadores ocorria uma vez por ano, na época das cheias, quando começava o período do acasalamento. Peixes grandes e pequenos, em seu balé coreográfico, deslizavam como serpentes, entre as folhas alternadas e espiraladas das árvores que sombreavam a Praça da Matriz. As crianças saltavam, gritavam e sorriam excitadas tentando tocar as escamas azuis dos peixes-voadores. Um azul diferente, índigo, quase violeta, que refletia a luz dos primeiros raios de sol que despontavam no povoado. 

Os olhos dos peixes-voadores pareciam ser mais achatados que os olhos dos peixes comuns. As barbatanas peitorais tinham quase o tamanho deles, assim como as barbatanas pélvicas. Juntas, formavam quatro asas que impulsionavam os animais para a frente. A impressão que se tinha, ao vê-los revoar sobre as cabeças dos moradores, era a de que os peixes-voadores, batendo as asas, assemelhavam-se a cavalos a galope – o mais rápido dos movimentos. O movimento dos peixes lançava água do Rio Vermelho que escorriam de suas escamas. Pareciam gotas de chuva taciturnas e cálidas que caíam sobre os olhos estupefatos e curiosos exalando um cheiro meio desagradável. Seu Ananias dizia que aqueles pingos davam sorte, por isso fazia questão de ficar bem embaixo da passagem deles. 

Aquele imenso cardume mergulhou na direção do rio, como se o magnetismo das águas os puxasse de volta para seu habitat. Entretanto, ao invés de imergirem imediatamente de ponta-cabeça, eles planavam como gaivotas por mais um tempo sobre a lâmina d’água. As quatro asas paravam de bater até que o peito tocasse levemente o espelho d’água, com a cauda conduzindo o movimento majestoso, exatamente como um leme, a orientar o caminho a seguir. E, como num passe de mágica, diante dos olhares fixos dos moradores, submergiam nas águas escuras e frias do Rio Vermelho. 

Os habitantes do povoado, inquietos, irrompiam em palmas perante aquele espetáculo ímpar da natureza. E quando tudo parecia terminado, grupos menores submergiam para brincar e ziguezaguear na face das águas, rio acima, instigando os cachorros a segui-los, latindo, pela margem direita do Rio Vermelho até o encontro com o Rio Miranda. 

Em tempo, para coroar de êxito ainda mais aquele presente do céu, um bando de cotovias atravessou o rio em voo ondulante, para cima e para baixo, alternadamente. No minuto em que as aves, cantando, subiram bem alto até parecer apenas um ponto no firmamento, os peixes-voadores desapareceram no rio, dando adeus à sua migração[1]

 



[1] A migração dos Peixes-Voadores e todos os acontecimentos que se sucederam após a sua chegada estão registrados no Livro de Tombo das Extraordinárias Passagens do Povoado das Onze Mil Virgens (N.A.).

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