sábado, 15 de maio de 2021

O POVOADO DAS ONZE MIL VIRGENS - CAPÍTULO 1 - SEU ANANIAS, “O HOMEM QUE TUDO VÊ”

Mapa do povoado das onze mil virgens/Ilustração de Jô Oliveira/Pawlo Cidade


Naquele extraordinário ano de 1942, quarta-feira, 16 de setembro, Seu Ananias, filho de seu Natanael, um dos mais antigos moradores do Povoado das Onze Mil Virgens, foi o primeiro a chegar na Praça da Igreja Matriz. Muito antes dos primeiros raios de sol despontarem por trás do Monte da Febre, ele chegou devagarinho, trazendo um banquinho de madeira, feito por ele mesmo, no último inverno. Escolheu o melhor local, de onde podia ver o tão esperado espetáculo secular da natureza, com os olhos “que a terra um dia haveria de comer”. E que olhos! Seu Ananias conhecia a vida de todos os moradores da vila. Sabia de tudo, antes mesmo de contarem a ele. Como ele sabia, ninguém sabe. Era um grande mistério, um segredo que, naquele grande dia, foi revelado. “Porque nada está encoberto senão para ser manifesto; e nada foi escondido senão para vir à luz”, dizia a beata Maria do Rosário, recordando uma passagem das escrituras sagradas.

Os irmãos Silva diziam que seu Ananias possuía o maior olho do mundo. A afirmação, em tom jovial, partira do irmão mais novo, João Silva. 

Labão, filho de Tiago de Alvarenga – o Tiagão – logo protestou:

- Quem tem o maior olho do mundo é Deus!

- Eu duvido! – Insistia João Silva, ainda espirituoso. Em seguida acrescentou: 

- Ananias tem o olho muito maior que o maior olho do maior monstro marinho do mundo, o polvo gigante das profundezas do oceano!

E todos caíram na gargalhada. Labão não sabia se ria da comparação do jovem ou da mentira que ele acabara de contar. João fantasiava demais. A culpa da exagerada comparação do irmão mais novo fora do pai, Josué Silva, que deu ao filho, quando completou doze anos, “Vinte Mil Léguas Submarinas”, de Júlio Verne. A bordo do famoso submarino Náutilus, sob o comando do Capitão Nemo, João viajou em suas páginas por mais de vinte vezes.

Havia ainda os que juravam que os olhos de Seu Ananias mais pareciam os olhos de uma mosca, “porque enxergavam tudo e todos em todas as direções”. A mosca, assim como a maioria dos insetos, possui olhos compostos, que fazem com que ela tenha uma visão de 360 graus! Seu Ananias era, no linguajar popular, também, “o homem mosca!”

Seu Ananias não andava, deslizava. Saía arrastando as alpercatas de couro pelas ruas empoeiradas do povoado, com os pés sempre na largura dos ombros, dobrando levemente os joelhos, empurrando-os, curvando igualmente o quadril e inclinando-se para a frente. Para manter o equilíbrio, Seu Ananias esticava os braços também para a dianteira e fitava seu destino, apoiado pela bengala de peroba. Os passos curtos evitavam uma topada ou um inesperado escorrego. Caminhava numa velocidade constante, num misto de equilíbrio e afastamento dos membros inferiores. Cada pé dava o impulso necessário ao outro, deslizando um por vez. Primeiro o pé esquerdo, depois o pé direito ao lado da bengala, transferindo para cada um seu peso, sem deixar, em nenhum momento, o pé deslizar fora do chão. Só assim se sentia mais confiante.

Da Rua de Lameque, também conhecida como “Rua das Putas Tristes”, de onde talvez tenha nascido o título do livro do escritor Gabriel García Márquez[1], até a praça da Igreja de Santa Úrsula, a padroeira do povoado, Seu Ananias levava uma manhã inteira. Era tão lento, tão lento, que uma lesma diante dele parecia uma lebre. E coitado daquele que se dispusesse a acompanhá-lo para apressar-lhe os passos. 

- Tenho todo o tempo do mundo, resmungava. 

E naqueles passos vagarosos, porém, observadores, analisava o ir-e-vir de cada um dos moradores de Onze Mil Virgens. Sabe aquele periscópio que sai do submarino para olhar em volta? Era como Seu Ananias se comportava quando pausava sua caminhada antes de chegar ao seu destino. Nada ficava às escondidas do olhar atento do velho. Parecia que aqueles olhos eram feitos de poderosas lentes de aumento que podiam enxergar através das paredes, o que lhe rendeu outro apelido: “Senhor Raio Xis”.

Dona Ruth, a bodegueira dos Secos e Molhados, debruçada sobre o balcão da mercearia, era a primeira a sinalizar quando Seu Ananias parava: 

- Olha lá o velho, parece uma coruja girando aquele pescoço de rosca. E fazia um gesto cômico com as mãos para os fregueses. Em seguida acrescentava em tom de espirituoso: 

- Os olhos de Ananias estão a ti espiaaar!

O som agudo e prolongado de sua gargalhada lembrava aqueles mamíferos da savana africana, as hienas. Entretanto, dona Ruth não viu quando Seu Ananias colocou bem perto do Monumento das Virgens o banquinho que ele mesmo fez. Era um banquinho um pouco maior que um tamborete, com cinquenta centímetros de altura, polido à mão, acoplado a um encosto de mais vinte centímetros, feito de peroba-rosa do resto de uma madeira que foi parar na sua carpintaria. Embora fosse um banco pequeno, era pesado. A peroba-rosa é uma madeira dura, e é muito mais durável quando não molha nem fica muito tempo em contato com o solo. Seu cerne varia entre o róseo-amarelado e o amarelo-queimado, delicadamente rosado, tendendo mais para o vermelho-rosado uniforme ou com manchas e listras escuras, tal qual a aparência do banco. A peroba-rosa quase não tem cheiro, mas tem um gosto amargo. Seu Ananias costumava também fazer o chá da casca da peroba-rosa, principalmente a amargosa, para proteger contra as picadas de inseto, sobretudo o que transmitia a malária. Aprendera com o pai o hábito de tirar uma pequena lasca da madeira, quase da espessura de um palito de dente, e mastigar para sentir, segundo ele, “o sabor da madeira”. 

- A peroba-rosa é a madeira! afirmava. Não sabia explicar por que tinha uma preferência especial por ela, contudo se orgulhava de já ter produzido caibros e ripas para muitos telhados, marcos de portas e janelas, venezianas, portões, molduras – sobretudo a moldura do quadro da senhorita Theda Bara – a loira mais metida e pernóstica de Onze Mil Virgens. A única com nome estrangeiro, batizada pela madrinha que veio dos “States”, “em homenagem à atriz americana”. 

De todos os móveis que fez usando a peroba-rosa, o que mais lhe deixava orgulhoso eram as carteiras escolares para seus netos e para todas as crianças do povoado que estudavam na Escola Municipal do Ensino Fundamental de Onze Mil Virgens. As carteiras escolares simbolizavam a extensão de seu ensinamento, mesmo sem saber escrever seu próprio nome. Eram verdadeiras obras de artes plásticas, feitas à mão, uma a uma, personalizadas com sua marca registrada: um peixinho, semelhante àqueles utilizados pelos cristãos primitivos. 


[1] Gabriel García Márquez escreveu “Memória de Minhas Putas Tristes”, publicado no Brasil, em 2005, pela Editora Record. Vale salientar que a história escrita pelo colombiano nada se compara com o arrogante Lameque, produtor de café que morava com suas três esposas. Exceto pelo fato de ambos – o personagem de Garcia e o atrevido Lameque possuírem quase a mesma idade (N.A.).

NOTA: O romance O povoado das onze mil virgens não foi dividido em capítulos númericos (1,2,3, etc). Mas em títulos. Para que você possa acompanhar a publicação dos capítulos neste blog, eles foram numerados.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por sua opinião. Volte sempre.

PRÉ-VENDA DE "A ÚLTIMA FLOR JUMA" EM FORMATO FÍSICO

O leitor pediu e aqui está! A versão impressa de A ÚLTIMA FLOR JUMA.  A última flor juma narra a saga de um pai e três filhas vivendo a bele...