– Ele foi por ali! – gritou Gambá, o menino dos gases mais poderosos do mundo, e você vai saber o porquê disso daqui mais à frente, apontando na direção das árvores do pomar, na esperança de poder reparar a confusão que ele acabara de aprontar, quando resolveu abrir a gaiola e deixou escapar o pequeno mico-leão-da-cara-dourada, que passou pelo tratamento de ferimentos na cabeça e na pata esquerda, causados por uma arapuca, aquela armadilha de varinhas que mais parece uma pirâmide para apanhar pássaros, de um desses comerciantes ilegais de animais silvestres. – Rápido, Charlie! Abre logo a rede, senão ele vai escapar!
– Você não tinha nada que abrir a porta da gaiola, Gambá. Se ele fugir, nós estamos ferrados! – reclamava Charlie, seu amigo.
– Por que você não disse que o mico era do seu pai, Charlie? – perguntou Gambá.
– E de que adiantaria? Você mexe em tudo mesmo – respondeu o amigo.
– Não gosto de ver animais engaiolados. Me dá um nó no estômago, minha cabeça fica girando e eu começo logo a chorar. Já experimentou passar um dia inteirinho na prisão? – dizia Gambá tentando se justificar, e, ao mesmo tempo, lembrando da vez em que ficou preso, quando criança, dentro de um tambor, vou contar esta história depois.
– Ah, qual é, Gambá! Quanto exagero! – retorquiu Charlie.
– Ele saltou na goiabeira! Pega, pega, pega! – berrou Tati, a irmã de Charlie, que também se juntou a eles e saiu na perseguição do mico fujão, que àquela altura se escondia na copa das amendoeiras. O guincho do pequeno sagui se parecia com o som estridente daquelas maritacas verdes barulhentas que chegavam todas as tardes para repousar nos araticuns do quintal da sede da fazenda, e na praça do Teatro, no centro da cidade.
– Pare de gritar, menina. Desse jeito você vai acabar espantando o bicho! – reclamou Charlie já subindo numa árvore com uma rede de dormir e a ajuda de uma escada de madeira que eles utilizavam para subir nos coqueiros.
– Ele já está assustado, mano. Só a careta que Gambá fez pra ele é de matar um elefante! – riu.
– Juro que você me paga, Gambá. Quando tudo isso acabar, você vai ver só! – disse Charlie.
– Tudo eu, tudo eu! Abre logo a rede que ele vai saltar agora – Gambá foi logo atrás, segurando a outra ponta da rede que eles tentavam usar como arapuca.
– Se ele subir no pé de jaca, já era – Charlie esticou a rede por cima dos galhos. – Ui! Um espinho me furou.
– Deixa de moleza, cara. Se abaixa que eu passo por cima de você e prendo ele na rede. Vai! – encorajava Gambá.
– Não está vendo que eu estou abaixado? Não está vendo, não? Anda logo!
– Se vocês dois falassem menos, já tinham pegado o bicho. Falem baixo! – dizia a irmã.
– Fala baixo, você, Tati. Viu?! O bicho pulou de novo – reclamou o irmão. – A culpa foi sua, dentuça!
– Dentuça é sua avó! – vociferou Tati.
– Você xingou vó Ninha? Xinga de novo, vai, xinga! Xinga que ela vai ficar sabendo – dizia Charlie. O outro estava quase pegando o pequeno primata pela calda longa quando escapuliu de um galho. Charlie o agarrou pela perna. Tati gritou, achando que Gambá iria cair da amendoeira. O macaco, mais assustado que os meninos, tomou o caminho da mata, por entre a copa das árvores, guinchando num misto de medo e alegria.
– Ele foi para a jaqueira e está fugindo. Se ele entrar na mata, a gente não vai mais conseguir pegá-lo – Tati estava quase chorando.
– Ah, mas ele não vai mesmo! – Charlie saltou imitando o mico entre os galhos. Tamanha habilidade lembrou um daqueles trapezistas de circo, dançando sobre aquelas barras horizontais aéreas, deixando o público com um frio na espinha. Gambá e Tati ficaram boquiabertos.
– Quem você pensa que é, Charlie, Tarzan? – os olhos de Tati estavam esbugalhados ao ver as acrobacias circenses do irmão no alto das árvores. Ela não sabia se sorria maravilhada ou se tremia de medo só de pensar na possibilidade de uma queda do irmão daquela altura. Gambá, admirado, desceu escorregando pela amendoeira ralhando um sonoro pum!... Peeinnnnnnnnnnnnnn!
Não houve passarinho que sobrevoasse o local naquele instante, tamanho era o odor desagradável que ele acabara de exalar. “Meu Deus!” Tati cerrou os dentes para não soltar um palavrão e se afastou vermelha de raiva. “Que fedor!”.
O mico-leão-da-cara-dourada saltou a jaqueira, a cerca, uma velha goiabeira, um pé de araticum, se equilibrou numa mamona, olhou para trás e mergulhou na mata, chilreando depressa, feito uma pipira-preta, que escondia secretamente manchas brancas embaixo de suas asas e se alimentava de botões de flor, com seu canto rápido que eles não sabiam ao certo se era de felicidade ou medo.
Charlie ficou paralisado no alto da jaqueira, venho o bichinho desaparecer na mata escura. Seu coração disparou, as mãos e as pernas tremeram feito vara verde, não pela fuga inesperada do mico, mas por se dar conta de que estava a mais de doze metros de altura.
– Você espantou o mico, Gambá! – reclamou, quase balbuciando, do alto da árvore.
– Desculpe, Charlie. Não pude evitar – lamentou o outro.
– Acho que nem um purgante resolve esse problema. Desde que a gente conhece Gambá que ele peida sem parar. O que é que você anda comendo, hein? Não é de se admirar que você tenha um apelido bem sugestivo – Tati cruzava os braços furiosa com a fuga do mico-leão, recordando que o codinome do amigo fazia referência àquele animal de hábitos noturnos e cara de rato que costuma soltar um cheiro ruim quando se sente ameaçado. – Só quero saber agora o que vocês vão dizer a painho.
– Só quero saber agora o que vocês vão dizer a painho! – ironizou Charlie repetindo a frase da irmã ainda do alto da árvore.
De súbito, o galho em que ele se segurava se quebrou e ele começou a cair de galho em galho, como se fosse uma daquelas bolas do pinball[1], em que a gente vai marcando pontos cada vez que a bola acerta mecanismos eletromecânicos e faz barulhos assim: Tim! Poim! Tum! Prink! Doiimm! Por sorte, ficou preso pela bermuda, com o traseiro para cima, antes de atingir o chão, tal qual fica presa a bola do pinball quando o mecanismo a segura.
– Ai, ai, ai, ai. Me ajudem a descer daqui! – gritou.
– Pois fique sabendo que, se depender de mim, você vai ficar aí até anoitecer – Tati cruzou novamente os braços e ameaçou ir embora. Gambá caiu na gargalhada. – E você, seu frouxo – se virou para Gambá –, saiba que o mico-leão fugiu por sua causa. Agora ele não vai mais para a reserva ecológica. É capaz até de morrer nesta mata.
– Tati, Tatizinha, você vai precisar de mim nas aulas de história, não é? – dizia Charlie tentando convencer a irmã.
– E daí? Agora tenho o Júnior que pode me ajudar. Não preciso mais de você. Se vire! Eu vou embora – foi se afastando.
– Júnior não sabe nem quem descobriu o Brasil, sua dentuça! – disse.
– Dentuça? – Tati fechou as mãos bufando. – Breve irei usar aparelho e vocês não vão mais me chamar de dentuça. Você vai ver, Charlie. Eu que nunca mais ajudo você com Ludmila – retaliou com os olhos cheios de lágrimas, lembrando ao irmão que não faria mais o papel de pombo correio para a amiga da sétima série por quem Charlie era apaixonado. – De hoje em diante, vou ser amiga de Beto e ajudar ele a conquistar sua futura namorada! – concluiu.
– Tati, Tatizinha, eu estava brincando – respondeu mudando o tom. – Agora me ajuda a descer daqui.
– Charlie, tenta segurar nesse cipó perto de você. Fecha os olhos e vai descendo devagarinho. Lembra daquele eucalipto que a gente subiu para ver o ninho de sanhaço? – recordava Gambá. E não deu certo, porque Charlie desceu tão rápido da árvore, que as coxas ficaram em carne viva!
– Como posso fazer isso se estou preso pela bermuda? Minhas pernas não param de tremer.
– É o que dá querer bancar o homem macaco. Tomara que você caia. Além de receber uma bronca de painho, vai se machucar todo – dizia Tati furiosa.
– Pois fique sabendo que, quando eu descer daqui, não vai ter painho que dê jeito nas suas bonecas. Vou rasgar todos os seus vesti... – nem bem terminou a frase, o galho que o segurava pela bermuda se partiu e ele voltou a cair. Caiu quase cinco metros e acabou ficando preso, dessa vez, pela gola da camisa, tal qual frango abatido, perto do chão. Gambá gargalhou ainda mais achando aquela cena engraçada.
– Eu vou embora e vou deixar vocês – a menina se afastou mais um pouco.
– Tati – ele estava furibundo –, eu vou contar para mamãe que foi você quem quebrou o espelho do banheiro dela.
– É? Pois eu conto para painho que você andou colando na prova de matemática – retrucou também, ameaçando.
– Mentira! Eu estava tirando uma dúvida com Gambá. Não foi, Gambá? Fala que foi, Gambá! – gritava Charlie.
Gambá continuava rindo. Ria tanto que até se contorcia no chão. Por pouco não soltou novas flatulências. Charlie balançava as pernas a menos de um metro do solo.
– E a galinha que morreu depois daquela experiência que vocês fizeram? Você disse para mamãe que ela tinha ficado doente – continuou ela.
– Você também participou da experiência, sua dentuça! – gritou Charlie recordando, arrependido, daquela experiência maluca de obrigar a galinha de angola a ingerir álcool até ficar bêbada. Ao invés de ouvirem o tradicional brado da pintadinha “Tô fraco, tô fraco”, quando a soltaram, eles juravam que ouviram a galinha sair gritando “Tô bêbada! Tô bêbada! Tô bêbada!”, mas ninguém acreditou.
– Fique sabendo que eu vou chegar em casa primeiro que você e te dedurar. Sua arapuca vai estar pronta, cabeça de melão! – e sumiu por trás dos arbustos.
Charlie berrava de raiva, esperneava, e se balançava para frente e para trás para ver se o galho quebrava. O tempo estava fechando. Nuvens pesadas e cinzentas se formavam no céu. O vento soprou mais forte. Gambá começou a ficar nervoso. De longe, ainda se ouviu uma frase de Tati, “Gambá, meu pai nunca mais vai deixar você passar as férias aqui no sítio!”.
– Desce logo, Charlie. Vai começar a chover – disse Gambá apreensivo.
– Por que você não pega aquela escada ali e põe aqui? Assim posso descer mais depressa – retrucou Charlie. Um raio brilhou no céu. Segundos depois, trovejou. Gambá se jogou no chão. – Pega logo a escada, medroso, antes que a chuva comece a cair.
– Meu pai do céu! É agora que eu não vou parar de soltar pum! – declarou Gambá. Em dias de trovoada, seus gases ganhavam mais intensidade. Ele costumava liberar mais de sessenta flatulências por dia! Um feito incrível, se levarmos em conta que o normal é de quatorze puns por dia. Por isso o menino era tão magro!
“Quem peida muito emagrece muito”, dizia a mãe de Gambá.
“É por isso que você não engorda!”, afirmava dona Judite.
– Gambá, nem pense nisso, nem pense nisso. Pega logo a escada, anda! – Charlie estava quase berrando. Gambá se arrastou até a pequena escada e a colocou embaixo de Charlie. O menino a alcançou com a ponta dos pés, se equilibrou e conseguiu se soltar do galho. – Ufa! Pensei que fosse cair. Obrigado, Gambá! – disse respirando aliviado.
– Obrigado, nada! Lembra daquelas figurinhas da seleção brasileira de 1982 que você me prometeu? Agora eu quero.
– Gambá, você não dá prego sem nó, né? – disse.
– Prego sem nó? E prego dá nó? – perguntou espantado.
– E não? Meu avô dizia que quando...
Gambá interrompeu:
– Para com isso, Charlie. Essas histórias de seu avô, todo mundo sabe que são invenções! – riu.
Vô João gostava mesmo de contar umas histórias mirabolantes de monstros, heróis, caçadas e contos de fada de que ele dizia ter participado. Vô João jurava de pé junto que ele havia sido o homem que vendeu os feijões mágicos para João na história de “João e o pé de feijão”, e que também tinha sido o caçador que matou o lobo e salvou a vovozinha.
– Qual é, Gambá? Você é ou não é meu amigo?
Gambá não teve tempo de responder. Outro raio rasgou o céu e atingiu em cheio a velha jaqueira. O enorme estrondo do trovão que veio logo em seguida se misturou ao pesado galho da árvore, que foi caindo na direção dos meninos. O estrondo só não foi maior que o pum de Gambá naquele dia em que eles fugiam de uns caçadores. Charlie e Gambá não sabiam se gritavam ou se corriam. Tati, que até então parecia ter ido embora, surgiu de repente por trás de uma moita de capim alto e saiu esticando-os para longe. Pegaram a estrada em direção à sede. Era um caminho de vegetação rasteira, recheado de pés de goiabeiras, carregadas de frutos, um verdadeiro banquete para os sanhaços, gurins, sabiás e uma infinidade de outras aves.
As primeiras gotas de chuva começavam a cair. Mais abaixo, numa ladeira que terminava no pé da grande Lagoa Encantada, inúmeros araticuns, cajueiros, mangueiras e tamarindeiros completavam o pomar. Outro estrondo se ouviu. Sempre que se via um raio, um trovão estava por vir. E, claro, um pum de Gambá!... Peeinnnnnnnnnnnnnn!
Só que aquele trovejo tinha vindo sem um raio. Os pássaros voaram desorientados, sem saber para que lado iam. De onde eles estavam, não se via mais a palmeira secular de mais de quarenta metros de altura entre os araticuns. Charlie chegou a pensar que o estrondo havia saído de um dos puns de Gambá, mas se enganou.
– Caramba, Gambá. Foi você quem peidou? – indagou Charlie, com os olhos esbugalhados.
– O barulho veio da lagoa – Gambá também estava atônito.
– Vamos embora que a chuva está aumentando – dizia Tati quando a chuva engrossou e os pingos começaram a escorrer pela copa das árvores.
– É melhor a gente ver o que houve – Charlie resolveu investigar. Gambá foi logo atrás. O que Gambá tinha de medo Charlie tinha de curiosidade e Tati tinha de precaução. Porém, na hora de desvendar um mistério, nenhum deles se preocupava com isso. Medo, curiosidade e cautela, era tudo uma coisa só para aqueles três pré-adolescentes.
– Pode ser perigoso. Voltem aqui! – esbravejou a menina levando as mãos sobre a cabeça, preocupada. Por um breve tempo, ficou sem saber se voltava para casa ou se seguia os garotos. A curiosidade gritou mais alto. Acabou decidindo ir atrás deles. Tati também queria saber o que havia acontecido.
[1] Antigo jogo eletromecânico onde o jogador manipula duas ou mais 'palhetas' de modo a evitar que uma ou mais bolas de metal (geralmente mais bolas aparecem em "modos missão no jogo") caiam no espaço existente na parte inferior da área de jogo. A bola, quando entra em contato com certos objetos espalhados pela área de jogo, estimula um som e aumenta a pontuação do jogador.
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