domingo, 6 de junho de 2021

CONTO



“Eu não acredito em coincidência, eu acredito em destino.

É mesmo? Eu também.

Que coincidência!”

Roberto Laranjeira

 


"138"

Pawlo Cidade

 

 

Carlos Santiago acordou com uma baita dor de cabeça. Escovou os dentes, tomou banho e se perfumou com uma colônia Fiorucci, da Red Lions, que sua noiva lhe presentou em seu último aniversário, no dia 13/8, antes mesmo de tomar um gole puro de café sem açúcar. A colônia fazia parte de um kit masculino que veio acompanhado de um desodorante spray, de 138 ml, que ele quase não usava, pois preferia desodorantes sem perfume. Uma semana depois, navegando pelo mercado livre, descobriu que o mesmo kit estava sendo vendido com 138% de desconto. Uma pechincha que ele achou que pudesse ser um embuste.

No quarto, sobre o criado-mudo, ao lado da cama, repousava a Bíblia aberta em Coríntios 1, capítulo 13, versículo 8, que estava escrito em destaque amarelo: “o amor nunca perece; mas as profecias desaparecerão, as línguas cessarão, o conhecimento passará”. Mas ele não recordava de ter deixado o livro sagrado marcada naquela passagem. Acreditou que aquela era a palavra para ser lida naquela manhã e saiu para o trabalho. 

No caminho, a visão começou a ficar borrada e um estranho zumbido surgiu no ouvido. Como havia um posto de saúde no bairro, resolveu passar para medir a pressão arterial. Ao aferir a pressão, a enfermeira notou que o esfigmomanômetro mecânico marcava 13 X 8. 

- Sua pressão está quase alta. Você é hipertenso? - perguntou a profissional de saúde.

- Que eu saiba, não – respondeu, dizendo também que acordou com uma dor de cabeça forte e no trajeto até o posto de saúde, percebeu que a visão estava enodoada e tinha um estranho zumbido no ouvido como se fossem grilos cantando.

- Hummm, sintomas de hipertensão – sentenciou a enfermeira franzino a testa, por cima dos óculos de grau. - O médico vai lhe medicar. Mas é melhor ver isso depois. 


Ele assentiu com a cabeça. Depois, foi atendido com uma rapidez incomum, por um médico recém-formado que lhe aconselhou repouso e que evitasse, entre outras coisas, alimentos ricos em farinha branca, a exemplo de biscoitos, macarrão e pão francês. “Logo, pão francês!”, protestou. Mas como já estava se sentindo melhor, e já estava quase na hora de bater o ponto no trabalho, correu até a parada de ônibus e conseguiu pegar o veículo da linha 138, que só ia até dois quarteirões antes do que estava habituado a descer. Mas foi o que apareceu disponível naquele momento e não havia mais tempo a perder.

Chegou na empresa com 13 minutos e 8 segundos de atraso, transpirando que nem maratonista. O segurança da portaria fez um sinal, meneando a cabeça com jeito de dono da empresa, desaprovando o atraso. Carlos Santiago riu sem mostrar os dentes ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas respondendo sem falar: “Foi o ônibus”.

Quando se sentou na cadeira de seu escritório, depois de passar por uns 13 conjuntos de baias e 8 lixeiras que estavam enfileiradas no corredor, arte de Caldas, zelador que costumava juntá-las para depois redistribuir entre as baias, escolhendo a seu bel prazer quem ficaria sem lixeira naquele dia, ligou o computador e o navegador trouxe logo a manchete “Burkina Faso: ataques mais sangrentos desde 2015 deixam ao menos 138 mortos.” Deu de ombros e comentou: “Sei lá onde fica Burkina Faso. Parece até nome de remédio”, riu. Um colega da baia ao lado que ouviu seu comentário e, provavelmente, havia lido também a notícia que foi manchete em todos os jornais, respondeu alto: 


- Fica na chamada zona das três fronteiras, entre Mali e Níger, na África Ocidental. Sua capital é Uagadugu. 

- Valeu, professor! – exclamou. De fato, Eduardo Limeira, seu colega de trabalho, havia, por um tempo, lecionado geografia no tradicional Colégio Estadual Paes de Carvalho, porém, por razões pessoais, abandonou a docência e resolveu se dedicar à contabilidade. “É mais fácil de organizar e acompanhar todas as mudanças”, confessou certa vez ao comparar o ato contábil com o processo educacional. 

No Colégio Estadual Paes de Carvalho, meninos e meninas usavam meias e camisas brancas. As meninas vestiam ainda saia plissada e os meninos calça, tal qual a calça azul marinho de tergal que Carlos Santiago usava quando estudou da primeira a quarta série, sempre ocupando o número 13, no caderno de chamadas, e a 8ª. posição na fila, à direita da professora. 

- Viu a goleada de ontem, Santiago? 13 a 8. Seu Paysandu está morto! – gritou o outro companheiro por cima da baia – era Pedro Bola, torcedor fanático do Remo, que ainda conservava um Corcel 76, com placa do Mercosul, com final 1H38. Além da paixão pelo time de coração, gostava de fofoca. Foi ele quem espalhou para a turma que Carlos Santiago andava frequentando a casa do chefe, às sextas-feiras, quando o gerente saía para um carteado da Rua 13, sempre às 8 da noite. O buchicho deu uma confusão dos diabos e quase rendeu a demissão de Carlos. O zelador comentou que se tivessem inventado uma mentira daquelas com seu nome que ele se valeria logo do artigo 138 do Código Penal, pois já fora vítima de calúnia e difamação e seu vizinho teve que indenizá-lo. Carlos Santiago deixou por menos. Embora soubesse que fora Pedro Bola o difamador, não havia como provar.


Sentiu fome. Ao olhar o relógio digital na parede, bem em frente a sua sala, no corredor, viu que já passara em muito o horário do almoço. O aparelho registrava exatamente 13 horas e 8 minutos. Estava tão concentrado no relatório que teria que entregar até o final da tarde que nem notou quando os outros companheiros saíram para almoçar. Ficou empacado na página 138 do documento por causa de uma dúvida sobre o lançamento de uma nota fiscal sem razão social, semelhante a outra nota do mesmo valor, R$ 138,00, emitida no mesmo dia e horário. A princípio, pensou logo se tratar de uma duplicação, mas depois foi informado pelo estagiário que as duas notas foram emitidas no mesmo valor, dia e horário pelo departamento de compras. Coincidência? Não. Estava aí uma coisa que Carlos Santiago não acreditava: coincidência. 

- Seu Santiago, o senhor soube que o Fernando Reis, do RH, ganhou uma bolada no jogo do bicho? – comentou o estagiário antes de esclarecer a ele sobre as notas duplicadas.

- E foi?! – indagou o contador em tom de exclamação.

- O sortudo levou 138 mil! – disse o estagiário sonhando com o prêmio. 

Neste momento, uma luzinha se acendeu na cabeça de Carlos. Pegou rapidamente um lápis, um bloco de papel, e foi escrevendo o que ele chamou de “simultaneidades” que havia vivido até aquele horário, 13h8. “Não pode ser!”, pensou. “É muita simultaneidade”. E continuou anotando as situações em que o número 138 havia se manifestado desde que saíra de casa naquela manhã. 

- Você acredita em coincidência? – perguntou uma hora depois a atendente do restaurante depois de pagar o almoço, R$ 13,08 (treze reais e oito centavos). A moça riu, pensando que ele estivesse lhe dando uma cantada. – É sério, prosseguiu, acredita ou não em coincidência?

- Acredito – disse ela, com as bochechas avermelhadas e os olhos semicerrados.

- Pois é – e começou a descrever as “simultaneidades” do dia. Hoje eu li uma passagem bíblica que estava no capítulo 13, versículo 8; usei um desodorante que nem gosto muito que tem 138 ml; passei mal esta manhã e a minha pressão deu 13 X 8; peguei o ônibus da linha 138; cheguei com 13 minutos e 8 segundos de atraso na empresa; hoje teve um massacre na África com 138 mortos; meu time tomou de 13 a 8; duas notas fiscais no meu balanço deram exatamente R$ 138,00; acabei de pagar a você R$ 13,08 e ainda nasci no dia 13/8! – gargalhou. 


A atendente, de boca aberta, olhos grandes e esbugalhados, enquanto uma fila de 138 pessoas já se formava atrás dele, disse receosa esperando a cantada ou a bronca do cliente:

- Digitei sem querer o valor de R$ 138,00 do seu almoço e o senhor nem percebeu! 

Ele sorriu outra vez, como fez com o segurança da empresa, sem mostrar os dentes. O celular tocou. Era sua noiva. Saiu do caixa fazendo sinal com o dedo sob reclamação dos demais clientes pela demora. Mas, felizmente, a atendente estornou o valor e só lhe foi cobrado o valor devido. 

- Amor, você não vai acreditar o que aconteceu! – foi dizendo antes mesmo que Carla Nívea pudesse falar. A noiva não deu ouvidos ao que ele tentara contar e foi logo gritando excitada:

- Você acredita que hoje, eu e minhas amigas, pedalamos 138km? Chegamos numa fazenda, do quilômetro 13, onde morreram 8 vacas com a queda de um raio, você soube? Vou enviar a foto para você. Se tivéssemos passado no mesmo horário, nós é que teríamos morrido. Que horror!... Depois, passamos por uma cachoeira linda, amor, com 13 patos adultos e 8 patinhos. Não é coincidência? E você vive me dizendo que não acredita em coincidência! E agora, acredita? A gente chegou na fazenda depois de passar por 13 ramais e 8 pés de eucalipto, você acredita nisso? Meu Deus, estou tão surpresa que só depois a gente se deu conta que éramos 13 ciclistas, com 8 de nós completando 13 anos e 8 meses de ciclismo. Não é fantástico?

Carlos Santiago apenas gaguejou do outro lado da linha. Pensou até em contar também todas as “coincidências” do dia, mas não quis interromper a comoção e a alegria da noiva. Deixou-a acreditando que os acasos daquele dia haviam acontecido unicamente com ela.

- Amor, preciso desligar. As meninas estão dizendo que só temos 13 minutos e 8 segundos de pedalada. Não é uma loucura, tudo isso? Beijo! – e desligou.


Carlos Santiago sacudiu a cabeça ainda sem acreditar. A tarde no escritório, passou depressa. Até às 17 horas, quando costumava bater o ponto e correr para o ponto de ônibus, nenhuma coincidência com medidas, pesos ou outras coisas mais lhe ocorreu. Exceto, os três números finais do telefone de sua noiva: 138, que ele nem sequer recordava que ela havia trocado.

Chegou em casa com o dia desaparecendo. Morava a tanto tempo naquele prédio que podia subir até o seu apartamento de olhos vendados. Na portaria, um técnico da prefeitura conversava com Seu Josué, o porteiro, que interrompeu a conversa para cumprimentá-lo e dizer:

- Seu Santiago, a prefeitura está mudando toda a numeração da rua, para atender ao novo código de endereçamento postal. O número do nosso prédio agora é... 

Antes mesmo que Seu Josué pudesse concluir, interrompeu o porteiro com um ar de quem não estava acreditando muito no que ele mesmo iria dizer, mas disse:

- 138!

- Como o senhor sabia? – indagou o porteiro, deslumbrado, como uma criança maravilhada frente a magia dos adivinhos.

Carlos Santiago, indiferente, mas ainda com ar de incrédulo e jeito de quem falou por falar, respondeu, sorrindo, sem mostrar os dentes:

- Coincidência.


Publicado também na revista eletrônica Trema. Leia aqui, em 06/06/2021.

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