quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

DEGUSTAÇÃO LITERÁRIA

Parábola do Juiz iníquo – Site Espírita


O JUIZ INÍQUO

Pawlo Cidade

Dona Imani de Jesus procurou doutor Joaquim Ribeiro, o juiz de paz da província, o homem mais arbitrário de Vila Bela. O homem tinha influência entre a maioria dos cidadãos do lugar; era o mais temido pelo corpo policial e capaz de interferir no processo político do estado. Contava com uma relação extensa entre os antigos senhores de engenho, influenciava os cargos políticos da Câmara de Vereadores e a grande maioria das escravarias, embora estas tivessem sido abolidas quatorze anos antes. 

Doutor Joaquim Ribeiro orgulhava-se de pertencer à “aristocracia da terra”. Um ateu convicto que detinha a fama de justiceiro contra os menos afortunados. Eleito por fazendeiros e latifundiários para atender aos interesses individuais e às famílias destes, dizia que legislava pela e para a fidalguia. Ai de quem o desafiasse maculando seus princípios, deturpando seus ideais. Bacharel de formação, concluiu os estudos pela Faculdade de Direito de São Paulo, mas continuava tocando os negócios do pai na fazenda de café. Sonhava ser Ministro do Supremo Tribunal Federal naqueles anos iniciais da República. Com a tinta rigorosa com a qual decidia suas sentenças, logo-logo sua fama se espalharia pelos quatro cantos do país e seu desejo não tardaria a se realizar. Corria entre os magistrados de paz na capital federal, onde o recém-criado Tribunal do Júri da Comarca de Vila Bela tornara-se modelo de justiça no país. 

Dona Imani de Jesus não deu ouvidos ao que disseram do doutor Joaquim Ribeiro. Nem sequer lhe passou pela cabeça que ele podia encarcerá-la, unicamente pelo fato de lhe dirigir a palavra. Não deixaram que ela entrasse no Tribunal, nem concederam nenhuma audiência com o dito juiz. Ela não recuou. Nem tampouco se deixou vencer pelas barreiras que lhe impuseram. Descobriu o endereço do juiz com a ajuda de alguns poucos amigos. Caminhou três léguas até sua residência e aguardou, pacientemente, a saída do doutor Joaquim Ribeiro de casa para o trabalho. Quando ele pôs os pés na calçada, se aproximou por trás dizendo: 

- Doutor, faz justiça com meu marido, pelo amor de Deus! 

O juiz continuou andando, sem dar nenhuma atenção ao apelo. Não olhou para a retaguarda, apenas a ignorou. 

No dia seguinte, bem cedo, lá estava ela novamente. Ao vê-lo sair, correu ao seu encontro e repetiu a solicitação. O juiz pensou que se tratasse de uma louca e a ameaçou. Depois, acelerou os passos e não respondeu nada outra vez. 

Quatro dias depois, já prevendo o aparecimento da mulher, o magistrado adiantou as passadas, enquanto ela, amiúde, implorava pela inocência do marido, desejosa de ver sua causa julgada honestamente. O juiz de paz estacou. Era uma figura pesada e sem elegância, de cara amarrada, que relanceava de quando em quando para dona Imani, por baixo daquelas sobrancelhas volumosas. Ele aspirou ruidosamente pelo nariz, como se quisesse adverti-la. A mulher estava a quatro passos atrás, desolada. Não disse nada e foi embora.

No décimo quinto dia, ao vê-la no portão, chamou os empregados e ordenou que a levassem dali. Seus gritos clamavam por misericórdia e atenção. Tudo que ela queria era apenas um minuto para que ele pudesse resolver seu problema. Na cidade, todos já sabiam da mulher do prisioneiro que fora preso sem julgamento e os cidadãos vilabelenses, mais condoídos, já começavam a falar de sua frieza e absoluta falta de compaixão. Foi, pouco a pouco, perdendo a popularidade. Já não gozava de tanto prestígio na sociedade. Poucos o cumprimentavam na rua. Os cochichos se estendiam e, cedo ou tarde, chegariam na capital. Incomodado com o falatório, inclusive de opositores na Câmara Municipal, e preocupado com a próxima eleição, o juiz iníquo, pensando em si mesmo e querendo se livrar daquela mulher, resolveu atendê-la. Ouviu o pedido de dona Imani, ali mesmo, no meio da rua e prometeu julgar a causa de Virgílio de Jesus. 

O processo foi posto, Virgílio de Jesus foi a julgamento. Mas o juiz o considerou culpado pelo sumiço das joias da família do mercador. Doutor Joaquim Ribeiro condenou o pobre homem a nove anos e nove meses de prisão. No julgamento, a acusação apresentou provas de que Virgílio de Jesus sabia do desaparecimento da mercadoria e, indiretamente, também seria o responsável pela morte de Malquias Amzalag. Afinal, quando o joalheiro chegou ao seu estabelecimento e viu que havia sido roubado, se apavorou e atravessou a Avenida Central entontecido, vindo a ser atropelado e morto.

No período em que passou na prisão, desenvolveu habilidades de um artífice. O talento se revelou no dia em que observou um menino brincando com o barro, no pátio de banho de sol dos detentos, num dia nublado de domingo, o dia oficial das visitas. A criança havia viajado com o pai de muito longe, de uma região chamada Ribeira dos Campos, perto da cidade de Caruaru, para visitar e conhecer o tio preso. Virgílio se aproximou da família e fez amizade com o pai da criança e com o tio. Ficou encantado com a peça que o menino criava, manipulando o barro com jeito. 

- Bonito, seu bonequinho... disse, tentando puxar conversa com o garoto.

- Não é um bonequinho, é um boi. Rebateu o menino, enquanto lapidava os chifres do animal com a água da poça da chuva. 

O pai, orgulhoso, entrou na conversa:

- Esse menino sabe é coisa. Outro dia ele fez um cavalo marinho igualzinho aos do mar. Esboçou um largo sorriso. Quando crescer vai ajudar a mãe a fazer panelas para vender na feira. E antes mesmo que Virgílio fizesse qualquer outra pergunta acrescentou:

- O nome dele é Vitalino! Vitalino Pereira dos Santos. E a criança continuou trabalhando no boizinho.

Um tempo depois, resolveu mexer no barro, durante o período em que ele e os companheiros tomavam banho de sol. Com dificuldade, fez um cavalo, depois um defunto na rede sendo carregado pelos amigos. Pouco a pouco foi se aperfeiçoando. Em menos de um ano, os detentos o apelidaram de “homem do barro”. Dois anos depois, alguns carcereiros traziam argila de suas casas para que Virgílio fizesse presépios e cenas do cotidiano, como homens montados a cavalo, animais ferozes, peixes e insetos. O trabalho foi ficando tão bom que os companheiros de cela cotizavam para comprar tinta para colorir as pequenas esculturas. Em contrapartida, Virgílio lhes retribuía com suas criações. No terceiro ano, já dominando por inteiro o novo ofício, o subdelegado o batizou de “Mestre Virgílio”, pois, para fazer as obras que ele fazia, só mesmo um mestre de nascença. 

Quando saiu da prisão, mudou com a família para o interior. Na bagagem, apenas um colchão de capim, algumas panelas de barro, lençóis e uma botija, presente de casamento de seu avô. Durante cinquenta anos, Virgílio de Jesus achou que havia perdido o mapa. Por diversas vezes tentou convencer a esposa do tesouro escondido. Ela o proibiu de falar naquele assunto enquanto viva estivesse lembrando-lhe sempre do tormento que ambos passaram. Entretanto, sem o mapa quem acreditaria nele? Sem o mapa o tesouro continuaria sendo uma lenda urbana, uma desculpa esfarrapada de um alforriado que, segundo o júri, roubou uma joalheria e matou o dono.

Agora estava só. Os filhos se casaram e voltaram para a capital. Dona Imani morrera de tuberculose sobre o sovado colchão de capim. Por orientação do pessoal da saúde, todos os objetos que tivessem tido contato com a doente deveriam ser destruídos, se possível queimados. Carregou o colchão com dificuldade até o quintal. Pegou uma faca grande para rasgar o colchão e retirar parte do capim afim de facilitar a queima. De súbito, ao cortar o coxim basteado, caiu um pequeno envelope, amarelado pelo tempo, do interior do colchão. Dentro do envelope, dobrado cuidadosamente em quatro partes, lá estava ele, o maldito mapa do tesouro de Malquias Amzalag, o mercador.




(Trecho do livro, O povoado das onze mil virgens, 2019, publicado pela Editora Teatro Popular de Ilhéus. "O juiz iníquo"foi inspirado numa parábola de Lucas 18:1-18).

domingo, 7 de novembro de 2021

AS DOCES AMARGAS MEMÓRIAS DE PEDRO E ALICE

 


Relacionamentos que começam com experiências públicas nunca dão certo. O meu tinha tudo para dar errado. Eu era seu professor, apesar de ela ser uma garota madura para sua idade: “Inteligente, sarcástica e rebelde”. Eu confesso que nunca fui tão feliz. E como sofri tanto!

Fechei o notebook depois de dizer, pela primeira vez, meu nome verdadeiro para aquela tal de “Sininha”. Se é que era “sininha” mesmo. E se fosse um homem se fingindo de mulher? Ri sozinho. Fiquei até com vontade de convidar a misteriosa “Sininha” para conhecer a maravilhosa Terra do Nunca: meu quarto e sala da Avenida Central. Ser solteiro tem suas vantagens e morar sozinho é um viva a liberdade! Prato sujo na pia, cueca no banheiro, toalha molhada no cesto de roupa enxuta, guarda-roupa pelo avesso, lixeira cheia até a tampa, chão melado da última vitamina que eu fiz, dezenas de exames dos alunos do segundo e terceiro ano espalhados pela mesa, pelo sofá e pela cama e ainda ouvir “Como eu quero” do Kid Abelha mais de vinte vezes sem ter ninguém para gritar com você: “Desliga esta merda! ” Já eram quase duas horas da manhã quando dormi, ali mesmo, na sala, embalado pela voz de Paula Toller

Acordei atrasado e sai debaixo de chuva. Consegui pegar o primeiro horário da turma A, depois peguei mais duas na turma C e por fim resolvi elaborar um teste para aplicar na turma B. Fiquei na secretaria até meio-dia. Quando fui saindo, dei de cara no portão principal com ela. A chuva continuava caindo forte. Um pé-d´água tremendo. Sorte que a cobertura do portão protegia da chuva.

- Oi! – Ela sorriu. Parecia mais amável. Bem diferente da primeira vez que a gente se digladiou na sala.

- Olá, Administradora de Empresas! E então? Já sabe fechar um balancete com uma tabela periódica? – Arrisquei uma piada. Era melhor ter sorrido de volta com um “Oi” também.

- Eu precisaria ser em primeiro lugar burra e em segundo professor de química!

Ri meio sem jeito. Mas não me intimidei:

- O que não seria um mau negócio.

Ela foi ainda mais sarcástica:

- Claro! Ganhar pouco, dormir tarde, passar fim de semana corrigindo provas!

- O salário pode não ser bom, mas eu gosto do que eu faço. – Estava sério.

- Hum, um idealista!

- Pelo menos eu tenho uma causa pela qual lutar.

- Eu também. Mas quando a gente chega à velhice, as causas são outras. – Ela me chamou de velho com classe! E eu só tinha 33!

- A falta de argumento é típica da pré-adolescência. – Sentenciei. 

- Então! – Exclamou. E a gente ficou ali, no portão da escola, olhando um para a cara do outro, como se fossem dois lutadores de MMA só esperando a hora do juiz dar o sinal e a gente partir para a briga. Foi até engraçado. Ela foi a primeira a quebrar o silêncio.

- O “velhinho” e a “criancinha” presos por causa da chuva. Vai dar o que falar.

- De jeito nenhum! A última coisa que eu gostaria de ter era uma amizade com uma aluna atrevida, metida e chata. – Fiz uma careta irônica.

- Vou chamar isso de elogio. – Respondeu com outra careta.

- Eu não teria tanta certeza. – Franzi a testa.

- Você não sabe o que está perdendo. – Ela esticou o dedo e tocou no lado direito do meu peito.

Dei de ombros. Aquela direta era uma indireta ou direta? Ou eu entendi tudo errado? Vai saber! Resolvi participar do jogo.

- Eu sei o que NÃO estou ganhando!

- Tem razão. – Concordou. A chuva diminuiu de intensidade. 

- É mesmo?

- Tudo bem. Eu vou indo. – Disse. Em seguida acrescentou: 

- Está ficando tarde. Já são 12:1, vou aproveitar a estiagem. Salomão fica furioso quando chego depois do almoço.

- Seu pai?

- Sim.

- Para que lado você está indo? 

- Zona Norte. Por quê?

- Quer uma carona? 

- Eu pensei que você não queria fazer amizade.

- Mudei de ideia. – Fiz sinal para que ela me acompanhasse. A minha gentileza abriu um precedente. Talvez fosse melhor não ter oferecido a carona. 


(CIDADE, Pawlo. AS DOCES AMARGAS MEMÓRIAS DE PEDRO E ALICE, Editora Mondrongo, Itabuna-Bahia, pp. 20-23).

domingo, 31 de outubro de 2021

O SANTO DE MÁRMORE


 

O Santo de Mármore é um livro publicado em 2013, cujo original nasceu em 1989. Foram mais de quinze anos tentando amadurecer uma história real que eu testemunhei. Narrar a história do nascimento do movimento estudantil organizado em Ilhéus, na Bahia, foi para mim uma experiência incrível. O título do livro foi inspirado na poesia homônima do professor de história José Carlos Galdino, publicado em agosto de 1987, no jornal Diário da Tarde.





sábado, 11 de setembro de 2021

UMA FÁBULA SOBRE AS ELEIÇÕES


ELEIÇÕES NA FLORESTA

Pawlo Cidade

Reino animal: Principais características e divisões - VouPassar


O leão estava confiante. Mesmo depois de ter feito um governo meia boca, graças à ajuda do governador leopardo, foi para a reeleição. Mas seu principal opositor, a jaguatirica, vinha subindo nas pesquisas e atacando de forma ferrenha, as áreas em que o leão tinha deixado a desejar. Sobretudo o Morro das Hienas e as ruas sem calçamento do bairro das raposas. 

Com a intervenção dos abutres, aves de rapina que não se contentavam apenas com as sobras dos felinos, o leão conseguiu fazer acordo com os macacos ladinos, de uma raça de primatas que se achava superior aos demais da própria espécie, com as peçonhentas surucucus e os jacarés oportunistas dos partidos nanicos que ensaiaram campanhas, mas no fundo queriam uma boquinha do governo do leão, caso fosse reeleito. É bem verdade que a pandemia ajudou mais do que prejudicou o pleito eleitoral, pois o leão já tinha sua base e os opositores ainda a estavam construindo. 

Porém, o tempo curto, imposto pelo Tribunal Superior Eleitoral da Floresta, o TSEF, acabou favorecendo quem já estava no poder. E o leão foi reeleito com 40% dos votos de todo o reino animal. Até as zebras, quem diria, votaram no leão, porque este havia prometido não mais comê-las enquanto estivesse no governo. Entretanto, as más línguas, diziam que na calada da lua cheia, mesmo durante o período de campanha, um chimpanzé, que pertencia à raça dos ladinos, flagrou o leão comendo uma zebrinha jovem que depois foi vista, ninguém sabe como, a frente de um dos mais importantes cargos da Secretaria de Assistência aos Bichos. Corria a bocas miúdas e depois passou a ser notícia em todos os jornais, que a zebrinha havia ressuscitado. Portanto, um milagre no reino. Mas como todas as zebras se parecem, a assessoria de comunicação do governo reeleito tratou de chamar o boato de fake news e ficou por isso mesmo.

Em seu segundo mandato, o leão cumpriu logo o acordo que fez com os macacos, elegendo o gorila como líder da câmara para controlar a diversidade que virou o legislativo: um alce, que todos sabiam que era veado; cinco macacos ladinos, sendo três chipanzés, um orangotango e um gorila; uma coruja e dois pardais da oposição; quatro raposas, duas em seu quarto mandato; um leão e um tigre. No fundo, o desafio não estava em controlar a forma de pensar dos nobres edis, mas em conter a fome dos neófitos que sonhavam ocupar todos os cargos do governo, principalmente depois que o leão prometeu recompensá-los pelo apoio a candidatura do gorila. Mas confessou, em segredo, ao chefe de gabinete, o senhor porco, que, provavelmente, não cumpriria a promessa com as zebras, muito menos com os veados, porque sua natureza originária o impedia de conter aquilo que ele mais apreciava. E seu apetite, sem dúvida, era maior que a assinatura de um papel.

Enquanto isso, a sociedade do reino que pagava o preço de ter reelegido o leão, se organizava em conselhos, observatórios e movimentos para complicar o mandato do leão na esperança de se fortalecer para eleger alguém comprometido com os pavões, um grupo espertalhão de falidos que mamaram durante muito tempo nas tetas do governo, bem como os búfalos e os gnus da empoeirada savana que corriam de um lado a outro do pampa sem saber para onde ir. 

No seu mandato, certamente o leão iria enfrentar o barulhento movimento das maritacas pela casa própria, depois que o chefe do executivo mandou derrubar as cinqüentenárias amendoeiras da avenida em prol do desenvolvimento. E também a oposição da aliança que se formou entre as girafas democratas que se autodenominavam de “nova política da floresta” e as combatentes da gordofobia, os hipopótamos; ou ainda a luta solitária do tatu bola que erguia a bandeira de uma cultura que já havia morrido, mas que a todo custo tentava ressuscitar. Ou talvez da campanha pela invasão dos sítios urbanos que vinha ganhando força e era liderada pelos ratos que já ocupavam os esgotos da cidade. 

Ainda bem que tudo isso não passa apenas de uma fábula que, por mais que ela se assemelhe a vida complicada, burocrática e ardilosa do ser humano, será compreendida apenas pelas corujas, eternas vigilantes, mesmo em noites sem lua e sem esperança, que estão o tempo todo a nos espiar.

sábado, 21 de agosto de 2021

DEPOIMENTO DE UM LEITOR SOBRE O TESOURO PERDIDO DAS TERRAS DO SEM-FIM

https://www.facebook.com/csmascarenhas.ios/posts/10215993026858282
O TESOURO DE PAWLO CIDADE 
Carlos Mascarenhas


Gosto muito de ler, e tenho digamos assim, uma mania que é, ao ler um romance de um determinado autor e gostar muito, procuro ler tudo que ele escreveu. Isto já aconteceu com os romances de Jorge Amado, de Érico Veríssimo, de Somerset Maugham, de alguns outros, e agora acontece com os romances de Pawlo Cidade, pois acredito eu que já li tudo que o amigo Pawlo escreveu.

Uma outra mania que tenho é começar a ler um romance, e gostando, lê-lo com alguma rapidez até fim, e depois reler com vagar, fazendo anotações, e descobrindo muitas coisas que na primeira leitura nem tinha percebido. Pois então, digo-lhes que li e depois reli pausadamente O TESOURO PERDIDO DAS TERRAS DO SEM FIM de Pawlo Cidade, gostei muito, e faço a seguir algumas considerações. 

No livro, Pawlo através da fala dos seus personagens, Gambá, Charlie, e Tati, que transitam da Lagoa Encantada até o Rio do Engenho passando pela Mata da Esperança, registra de forma leve, romanceada e bem agradável, muito da nossa geografia, da nossa história, e principalmente descreve as nossas riquezas ambientais e culturais, e faz isto com muito conhecimento e exatidão. Por esta razão fica aqui a sugestão de que este livro passe a fazer parte do currículo das nossas escolas. 

Recomendo aos meus amigos e até aos meus inimigos, caso os tenha (rs.), a compra e a leitura do Tesouro, que pode ser adquirido com o autor, e tenho certeza de que quem fizer isto vai me agradecer pela indicação, e agradecer muito a Pawlo Cidade, por nos ter presenteado com mais este belo romance, no qual ele até se dá ao luxo de citar de maneira jocosa, o Sr. Ananias, um personagem do seu outro romance, O Povoado das Onze Mil Virgens.

Parabéns Pawlo, desculpe os spoilers, e fique certo de que já estou na fila para adquirir o seu próximo romance, que espero não demore. 
Em tempo, digo que estejam os amigos, quando estiverem lendo o livro, preparados para entender e matar charadas. E mais não digo. rs.


Carlos Mascarenhas
Publicado originalmente no Facebook. 

terça-feira, 20 de julho de 2021

VEJA COMO GANHAR UM EXEMPLAR DE "O TESOURO PERDIDO DAS TERRAS DO SEM-FIM"

Dia 24 de julho, das 18h às 19h, estarei lançando a 2a. edição, revista e ampliada, de "O TESOURO PERDIDO DAS TERRAS DO SEM-FIM". Durante a sessão de lançamento na minha conta pessoal do Instagram (@pawlocidade) eu vou sortear 10 (dez) livros. Para ganhar um é super fácil:

Os dez primeiros que conseguirem marcar 20 (vinte) pessoas diferentes, ganha na hora o exemplar. Não importa de qual lugar do Brasil você seja. Marcou 20 (vinte) diferentes nomes e está entre os 10 (dez) primeiros, ganhou!

Mas a promoção só vale a partir do momento em que eu disser: "A partir de agora você já pode marcar 20 (vinte) pessoas diferentes", ok?

Pronto! Regra simples! Fique atent@ e participe.

terça-feira, 13 de julho de 2021

ESCRITOR PAWLO CIDADE LANÇA LIVRO INFANTOJUVENIL O TESOURO PERDIDO DAS TERRAS DO SEM-FIM

 

Quem não gostaria de viver a aventura de caçar um tesouro perdido, ainda mais ao lado de seus melhores amigos? Pois é justamente o que Charlie, Tati e Gambá decidem fazer depois de descobrirem um mapa com a localização de um lendário tesouro escondido há mais de cem anos na zona rural de Ilhéus. 


Seguindo pistas e desvendando enigmas, os três partem em uma jornada incrível através da Mata Atlântica, fazendas de cacau, manguezais e rios. Uma aventura que exigirá deles coragem, inteligência e um tanto de sorte. Juntos, mergulharão na rica história de Ilhéus, nos mistérios e lendas da Lagoa Encantada e nos cuidados com a natureza. Este é o enredo do livro infanto-juvenil, “O tesouro perdido das terras do sem-fim”, 2ª. edição revista e ampliada do escritor Pawlo Cidade. A primeira edição foi publicada em 2005.


Pawlo Cidade, autor de 18 livros, pedagogo, gestor cultural e consultor de políticas públicas para a Cultura consegue, com uma linguagem simples, contar a história de modo alegre e inusitado, permeando vários temas como geografia, botânica, costumes, culturas.


Para Agenor Gasparetto, editor da Via Litterarum, a reedição de O tesouro perdido das terras do sem-fim “é para quem gosta de uma boa leitura e acredita ser possível salvaguardar e dar vida à natureza”. 


O tesouro perdido das terras do sem-fim remonta à narrativa sobre o desenvolvimento da Capitania de São Jorge dos Ilhéus, a colônia dos alemães, a existência dos índios botocudos, as primeiras igrejas e os tempos áureos do cacau.


Marcel Santos que cuidou do projeto gráfico e é também co-editor, através da Editora A5, ressalta que a obra prende o leitor do início ao fim: “Ou eu cuidava da estrutura gráfica do romance ou me envolvia na história. No fim, consegui dar conta das duas coisas.”


A obra é resultado do prêmio Edital Arte Livre, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Ilhéus, pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo, com recursos da Lei Aldir Blanc e ilustrações exclusivas do premiado Jô Oliveira.

 

SERVIÇO:

O que? LIVRO O TESOURO PERDIDO DAS TERRAS DO SEM-FIM;

Quando? DIA 24 DE JULHO DE 2021

Horário? 18 horas

Onde? INSTAGRAM DO AUTOR: @PAWLOCIDADE

Quanto: R$ 40,00. 


O livro estará a venda no site das editoras A5 e Via Litterarum e no blog da Comunidade Tia Marita. Mas podem ser adquiridos diretamente com o autor.

 

terça-feira, 22 de junho de 2021

OPINIÃO





INTERMITENTE DO ESPETÁCULO

Pawlo Cidade


6 mil cinemas, 3 mil livrarias, 2500 casas de show, 1200 museus e mais de mil 1000 teatros fechados. 2540 shows cancelados em festivais de verão do Hemisfério Norte, que tentam sobreviver a um prejuízo da ordem de € 3 milhões. Essa era a situação da França no auge da pandemia. A Cultura na França é uma área que emprega mais de 1 milhão de franceses e que produz dividendos sete vezes maiores que a indústria automobilística do país. Pesquisando sobre a reação dos governos da Europa, a exemplo da Alemanha, Reino Unido e a própria França, em relação ao setor cultural, não me surpreendi com o posicionamento destes países.

Tomando apenas a França como modelo desta questão, o presidente Emanuell Macron anunciou logo que manteria o sistema de remunerações dos artistas, produtores e técnicos das artes e a criação de um fundo de indenização para todos os profissionais do audiovisual francês cujas produções fossem canceladas devido à crise do coronavírus. Surgiram também outras ajudas de emergência que foram dirigidas pelo Centro Nacional de Cinema da França. Neste período, também entrou em ação um negócio chamado “Sistema da Intermitência” que nossos políticos podiam muito bem copiar para socorrer a classe artística, independente da implantação da Lei Aldir Blanc. 

O “Sistema da Intermitência” é uma especificidade francesa que garante a sobrevivência de artistas e técnicos do espetáculo durante o período em que não estão em atividade na França. Com ou sem pandemia! Para ter esse direito cada profissional deve cumprir e comprovar 507 horas de trabalho por ano, sem as quais não se consegue o subsídio. Esses trabalhadores são denominados de “intermitente do espetáculo”. Explico: Trata-se de um artista ou técnico que trabalha de maneira ocasional em empresas de produção teatral, cinematográfica ou de audiovisual em geral e que se beneficia de um seguro desemprego calculado a partir de um número mínimo de horas trabalhadas e uma contribuição suplementar aplicada especificamente para esta categoria, no regime previdenciário francês.

É uma espécie de seguro de “retorno ao emprego” que funciona como um complemento de renda, dada a natureza sazonal da maioria das atividades culturais. Foi criado em 1936, para os técnicos e funcionários do cinema, impulsionado pela demanda dos produtores de cinema que, na época, não encontravam técnicos, artesãos e operários dispostos a trabalhar pelo tempo das produções. Mas só a partir de 1° de outubro de 2014 é possível acumular este seguro e um salário de acordo com um conjunto de critérios especificado no Código de Trabalho Francês. As produções realizadas por empresas do ramo da cultura duram pouco tempo, o que leva essas empresas a contratar artistas, atores, técnicos e operários por períodos pré-definidos em um tipo de contrato chamado na França de “contrato de duração determinada”. Este contrato pode ser, inclusive, de alguns dias. No entanto, os dias parados são também pagos graças ao sistema de intermitência. 

Na França, trabalhadores e trabalhadoras da cultura são considerados assalariados e não profissionais liberais. Penso que este tipo de auxílio pode ser criado pelo Município ou pelo Estado, fortalecendo e valorizando a classe trabalhadora da Cultura. Ao repensar as políticas públicas de cultura, o Estado há de se considerar essa gigantesca massa de trabalhadores e trabalhadoras que vivem exclusivamente de suas atividades artísticas e criar um auxílio permanente que garanta a sobrevivência destes profissionais em períodos pandêmicos ou nos hiatos compreendidos entre uma e outra atividade, como faz a França.

Veja mais OPINIÕES clicando aqui.

domingo, 6 de junho de 2021

CONTO



“Eu não acredito em coincidência, eu acredito em destino.

É mesmo? Eu também.

Que coincidência!”

Roberto Laranjeira

 


"138"

Pawlo Cidade

 

 

Carlos Santiago acordou com uma baita dor de cabeça. Escovou os dentes, tomou banho e se perfumou com uma colônia Fiorucci, da Red Lions, que sua noiva lhe presentou em seu último aniversário, no dia 13/8, antes mesmo de tomar um gole puro de café sem açúcar. A colônia fazia parte de um kit masculino que veio acompanhado de um desodorante spray, de 138 ml, que ele quase não usava, pois preferia desodorantes sem perfume. Uma semana depois, navegando pelo mercado livre, descobriu que o mesmo kit estava sendo vendido com 138% de desconto. Uma pechincha que ele achou que pudesse ser um embuste.

No quarto, sobre o criado-mudo, ao lado da cama, repousava a Bíblia aberta em Coríntios 1, capítulo 13, versículo 8, que estava escrito em destaque amarelo: “o amor nunca perece; mas as profecias desaparecerão, as línguas cessarão, o conhecimento passará”. Mas ele não recordava de ter deixado o livro sagrado marcada naquela passagem. Acreditou que aquela era a palavra para ser lida naquela manhã e saiu para o trabalho. 

No caminho, a visão começou a ficar borrada e um estranho zumbido surgiu no ouvido. Como havia um posto de saúde no bairro, resolveu passar para medir a pressão arterial. Ao aferir a pressão, a enfermeira notou que o esfigmomanômetro mecânico marcava 13 X 8. 

- Sua pressão está quase alta. Você é hipertenso? - perguntou a profissional de saúde.

- Que eu saiba, não – respondeu, dizendo também que acordou com uma dor de cabeça forte e no trajeto até o posto de saúde, percebeu que a visão estava enodoada e tinha um estranho zumbido no ouvido como se fossem grilos cantando.

- Hummm, sintomas de hipertensão – sentenciou a enfermeira franzino a testa, por cima dos óculos de grau. - O médico vai lhe medicar. Mas é melhor ver isso depois. 


Ele assentiu com a cabeça. Depois, foi atendido com uma rapidez incomum, por um médico recém-formado que lhe aconselhou repouso e que evitasse, entre outras coisas, alimentos ricos em farinha branca, a exemplo de biscoitos, macarrão e pão francês. “Logo, pão francês!”, protestou. Mas como já estava se sentindo melhor, e já estava quase na hora de bater o ponto no trabalho, correu até a parada de ônibus e conseguiu pegar o veículo da linha 138, que só ia até dois quarteirões antes do que estava habituado a descer. Mas foi o que apareceu disponível naquele momento e não havia mais tempo a perder.

Chegou na empresa com 13 minutos e 8 segundos de atraso, transpirando que nem maratonista. O segurança da portaria fez um sinal, meneando a cabeça com jeito de dono da empresa, desaprovando o atraso. Carlos Santiago riu sem mostrar os dentes ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas respondendo sem falar: “Foi o ônibus”.

Quando se sentou na cadeira de seu escritório, depois de passar por uns 13 conjuntos de baias e 8 lixeiras que estavam enfileiradas no corredor, arte de Caldas, zelador que costumava juntá-las para depois redistribuir entre as baias, escolhendo a seu bel prazer quem ficaria sem lixeira naquele dia, ligou o computador e o navegador trouxe logo a manchete “Burkina Faso: ataques mais sangrentos desde 2015 deixam ao menos 138 mortos.” Deu de ombros e comentou: “Sei lá onde fica Burkina Faso. Parece até nome de remédio”, riu. Um colega da baia ao lado que ouviu seu comentário e, provavelmente, havia lido também a notícia que foi manchete em todos os jornais, respondeu alto: 


- Fica na chamada zona das três fronteiras, entre Mali e Níger, na África Ocidental. Sua capital é Uagadugu. 

- Valeu, professor! – exclamou. De fato, Eduardo Limeira, seu colega de trabalho, havia, por um tempo, lecionado geografia no tradicional Colégio Estadual Paes de Carvalho, porém, por razões pessoais, abandonou a docência e resolveu se dedicar à contabilidade. “É mais fácil de organizar e acompanhar todas as mudanças”, confessou certa vez ao comparar o ato contábil com o processo educacional. 

No Colégio Estadual Paes de Carvalho, meninos e meninas usavam meias e camisas brancas. As meninas vestiam ainda saia plissada e os meninos calça, tal qual a calça azul marinho de tergal que Carlos Santiago usava quando estudou da primeira a quarta série, sempre ocupando o número 13, no caderno de chamadas, e a 8ª. posição na fila, à direita da professora. 

- Viu a goleada de ontem, Santiago? 13 a 8. Seu Paysandu está morto! – gritou o outro companheiro por cima da baia – era Pedro Bola, torcedor fanático do Remo, que ainda conservava um Corcel 76, com placa do Mercosul, com final 1H38. Além da paixão pelo time de coração, gostava de fofoca. Foi ele quem espalhou para a turma que Carlos Santiago andava frequentando a casa do chefe, às sextas-feiras, quando o gerente saía para um carteado da Rua 13, sempre às 8 da noite. O buchicho deu uma confusão dos diabos e quase rendeu a demissão de Carlos. O zelador comentou que se tivessem inventado uma mentira daquelas com seu nome que ele se valeria logo do artigo 138 do Código Penal, pois já fora vítima de calúnia e difamação e seu vizinho teve que indenizá-lo. Carlos Santiago deixou por menos. Embora soubesse que fora Pedro Bola o difamador, não havia como provar.


Sentiu fome. Ao olhar o relógio digital na parede, bem em frente a sua sala, no corredor, viu que já passara em muito o horário do almoço. O aparelho registrava exatamente 13 horas e 8 minutos. Estava tão concentrado no relatório que teria que entregar até o final da tarde que nem notou quando os outros companheiros saíram para almoçar. Ficou empacado na página 138 do documento por causa de uma dúvida sobre o lançamento de uma nota fiscal sem razão social, semelhante a outra nota do mesmo valor, R$ 138,00, emitida no mesmo dia e horário. A princípio, pensou logo se tratar de uma duplicação, mas depois foi informado pelo estagiário que as duas notas foram emitidas no mesmo valor, dia e horário pelo departamento de compras. Coincidência? Não. Estava aí uma coisa que Carlos Santiago não acreditava: coincidência. 

- Seu Santiago, o senhor soube que o Fernando Reis, do RH, ganhou uma bolada no jogo do bicho? – comentou o estagiário antes de esclarecer a ele sobre as notas duplicadas.

- E foi?! – indagou o contador em tom de exclamação.

- O sortudo levou 138 mil! – disse o estagiário sonhando com o prêmio. 

Neste momento, uma luzinha se acendeu na cabeça de Carlos. Pegou rapidamente um lápis, um bloco de papel, e foi escrevendo o que ele chamou de “simultaneidades” que havia vivido até aquele horário, 13h8. “Não pode ser!”, pensou. “É muita simultaneidade”. E continuou anotando as situações em que o número 138 havia se manifestado desde que saíra de casa naquela manhã. 

- Você acredita em coincidência? – perguntou uma hora depois a atendente do restaurante depois de pagar o almoço, R$ 13,08 (treze reais e oito centavos). A moça riu, pensando que ele estivesse lhe dando uma cantada. – É sério, prosseguiu, acredita ou não em coincidência?

- Acredito – disse ela, com as bochechas avermelhadas e os olhos semicerrados.

- Pois é – e começou a descrever as “simultaneidades” do dia. Hoje eu li uma passagem bíblica que estava no capítulo 13, versículo 8; usei um desodorante que nem gosto muito que tem 138 ml; passei mal esta manhã e a minha pressão deu 13 X 8; peguei o ônibus da linha 138; cheguei com 13 minutos e 8 segundos de atraso na empresa; hoje teve um massacre na África com 138 mortos; meu time tomou de 13 a 8; duas notas fiscais no meu balanço deram exatamente R$ 138,00; acabei de pagar a você R$ 13,08 e ainda nasci no dia 13/8! – gargalhou. 


A atendente, de boca aberta, olhos grandes e esbugalhados, enquanto uma fila de 138 pessoas já se formava atrás dele, disse receosa esperando a cantada ou a bronca do cliente:

- Digitei sem querer o valor de R$ 138,00 do seu almoço e o senhor nem percebeu! 

Ele sorriu outra vez, como fez com o segurança da empresa, sem mostrar os dentes. O celular tocou. Era sua noiva. Saiu do caixa fazendo sinal com o dedo sob reclamação dos demais clientes pela demora. Mas, felizmente, a atendente estornou o valor e só lhe foi cobrado o valor devido. 

- Amor, você não vai acreditar o que aconteceu! – foi dizendo antes mesmo que Carla Nívea pudesse falar. A noiva não deu ouvidos ao que ele tentara contar e foi logo gritando excitada:

- Você acredita que hoje, eu e minhas amigas, pedalamos 138km? Chegamos numa fazenda, do quilômetro 13, onde morreram 8 vacas com a queda de um raio, você soube? Vou enviar a foto para você. Se tivéssemos passado no mesmo horário, nós é que teríamos morrido. Que horror!... Depois, passamos por uma cachoeira linda, amor, com 13 patos adultos e 8 patinhos. Não é coincidência? E você vive me dizendo que não acredita em coincidência! E agora, acredita? A gente chegou na fazenda depois de passar por 13 ramais e 8 pés de eucalipto, você acredita nisso? Meu Deus, estou tão surpresa que só depois a gente se deu conta que éramos 13 ciclistas, com 8 de nós completando 13 anos e 8 meses de ciclismo. Não é fantástico?

Carlos Santiago apenas gaguejou do outro lado da linha. Pensou até em contar também todas as “coincidências” do dia, mas não quis interromper a comoção e a alegria da noiva. Deixou-a acreditando que os acasos daquele dia haviam acontecido unicamente com ela.

- Amor, preciso desligar. As meninas estão dizendo que só temos 13 minutos e 8 segundos de pedalada. Não é uma loucura, tudo isso? Beijo! – e desligou.


Carlos Santiago sacudiu a cabeça ainda sem acreditar. A tarde no escritório, passou depressa. Até às 17 horas, quando costumava bater o ponto e correr para o ponto de ônibus, nenhuma coincidência com medidas, pesos ou outras coisas mais lhe ocorreu. Exceto, os três números finais do telefone de sua noiva: 138, que ele nem sequer recordava que ela havia trocado.

Chegou em casa com o dia desaparecendo. Morava a tanto tempo naquele prédio que podia subir até o seu apartamento de olhos vendados. Na portaria, um técnico da prefeitura conversava com Seu Josué, o porteiro, que interrompeu a conversa para cumprimentá-lo e dizer:

- Seu Santiago, a prefeitura está mudando toda a numeração da rua, para atender ao novo código de endereçamento postal. O número do nosso prédio agora é... 

Antes mesmo que Seu Josué pudesse concluir, interrompeu o porteiro com um ar de quem não estava acreditando muito no que ele mesmo iria dizer, mas disse:

- 138!

- Como o senhor sabia? – indagou o porteiro, deslumbrado, como uma criança maravilhada frente a magia dos adivinhos.

Carlos Santiago, indiferente, mas ainda com ar de incrédulo e jeito de quem falou por falar, respondeu, sorrindo, sem mostrar os dentes:

- Coincidência.


Publicado também na revista eletrônica Trema. Leia aqui, em 06/06/2021.

DEGUSTAÇÃO DE MAIS UM CAPÍTULO DE "O TESOURO PERDIDO DAS TERRAS DO SEM-FIM", A SER LANÇADO BREVEMENTE


Versão final da capa da nova edição, com ilustração de Jô Oliveira** e arte-final de Marcel


 E A TERRA ROLOU!*

  

Quando chegaram ao alto da ladeira, presenciaram um grande deslizamento de terra. Toda sorte de sapucaias, cajueiros e araticuns daquele lado do sítio haviam descido ladeira abaixo. Era terra que não acabava mais. A lama cobriu boa parte das novas plantações do cacau e foi parar na lagoa. Os meninos ficaram espantados com o escorregamento.

– Bem que painho falou que este lado era perigoso – disse Tati ao se deparar com o destroncamento da terra.

– O cacau não conseguiu impedir o deslocamento da terra. Essa terra é muito fofa. Deve ter acumulado muita água – Charlie falava como um geólogo experiente querendo imitar o pai que, além de ter se formado em geografia, havia se especializado em educação ambiental.

– Olha lá, gente! É o mico-leão! – sobressaltou-se Gambá. 

O mico-leão-da-cara-dourada estava preso a um dos galhos do araticum que desceu junto com o barranco, com as pernas e a cauda cobertas pela lama vermelha e um olhar triste, guinchando de dor. Charlie não pensou duas vezes, quis logo salvar o sagui.

– Temos que tirar ele de lá. A terra pode correr outra vez. Ele vai ser soterrado – precipitou-se para descer. Tati o segurou pelo braço.

– Está maluco, mano? Não vamos conseguir pegá-lo. É muito perigoso.

– Se a gente trabalhar em equipe, não! – e saiu procurando o cipó de uma das plantas trepadeiras que estavam enroscadas entre as árvores que caíram. A ideia era prender o cipó à sua cintura e descer o barranco. Quando encontrou, voltou dizendo: – Eu vou descer e vocês vão me segurar, igual aquele filme que a gente assistiu. 

“Que loucura! Menino inventa é coisa. Filme não é realidade, filme é ficção!”, alertara uma vez seu pai.

– Larga de bancar o herói, Charlie! – ralhava Tati.

– Você vai ajudar ou não? É a única chance de trazer o mico de volta.

– Droga! Por que eu fui ter um irmão tão teimoso? – e segurou o cipó de imbé com a ajuda de Gambá. Era o cipó de imbé que Vó Ninha gostava de usar para fazer cestas e passar o tempo quando visitava o sítio.

A chuva ficou ainda mais densa. O mico-leão chilreava cada vez mais forte. Tati começou a chorar. Estava tremendo de medo. Os relâmpagos haviam cessado, mas tudo levava a crer que eles logo voltariam. A água que escorria pela ladeira poderia provocar mais deslizamentos.

– Solta mais o cipó! – ordenava Charlie, se segurando como podia, entre troncos, pedras e o barro, enquanto descia. 

– Estou começando a ficar nervoso. Aliás, eu já estou nervoso. Meu intestino está revirando, eu vou soltar um... – Gambá levou uma das mãos ao abdômen. 

– Não! – berrou Tati, paralisando imediatamente Gambá. – Se soltar mais um dos seus terríveis puns, eu juro que painho vai ficar sabendo de tudo! E você, Gambá, vai pagar o pato!

– Que pato? Eu não peguei pato nenhum – largou o cipó. Charlie escorregou ladeira abaixo. Tati foi junto. Gambá, ao perceber o que havia feito, se esticou todo e conseguiu agarrá-la pelo pé esquerdo, bem na tira da sandália de couro, ainda se defendendo do tal pato. – Juro que não peguei o pato Pintado! Eu juro! Isso foi coisa daquela raposa velha. Não vou pagar pato nenhum!

– Não foi isso que eu quis dizer, seu bobão! Agora, tenta me puxar pra cima – dizia ela, quase gritando.

O pato Pintado era o chamego de dona Marita. Gostava de acordar os pais de Charlie às cinco da manhã para comer. Costumava ficar de vigia na cancela principal do sítio. Fazia o maior barulho quando um estranho se aproximava. Um dia, desapareceu misteriosamente. Gambá pensou que Tati estava culpando-o pelo desaparecimento do pato. Mas depois que Seu Guiga encontrou um monte de penas embaixo do galinheiro, deduziu que uma raposa velha que rodeava o sítio havia sido a responsável pelo sumiço de Pintado. Tati só estava querendo dizer que o grande culpado de toda aquela confusão era ele. Daí a expressão, “pagar o pato”.

– Parem com essa discussão! Vejam, eu peguei o macaco! Eu peguei o macaco! – exclamou, eufórico.

– Charlie pegou o mico-leão! – disse Gambá, largando Tati. Os irmãos desceram mais depressa em direção à lagoa. Gambá se desesperou. Os raios voltaram. Antes mesmo de o trovão vir em seguida, Gambá soltou outro pum insuportável: “Brummmmm!”

Charlie e Tati se agarraram aos galhos em meio aos destroços. Seus pés estavam a meio metro da lagoa. Naquela parte do espelho d’água, era comum o aparecimento de sucuris, as maiores serpentes da floresta. Vô João dizia que elas se amotinavam no capim alto que cobria aquela área, onde costumavam dormir e caçar. Ele mesmo havia visto uma daquelas enormes cobras engolindo um boi inteirinho na beira d’água, um não, três bois. Agora imagine uma cobra com três bois na barriga. Que tamanho não era essa cobra, hein? Foi num dia chuvoso como aquele.

– Joga o cipó, Gambá! – vociferava Charlie, tentando puxar Tati para a parte mais alta da árvore caída. Ele passou o mico-leão para ela. Em meio aos trovões, ouviram os berros de dona Marita e Seu Guiga procurando por eles. Tati começou a chamar pelo pai. 

– Estamos aqui, painho! Estamos aqui nos pés de cacau! – dizia ela.

Gambá puxou o cipó e arremessou na direção de Charlie. Mais troncos e terra começaram a descer, arrastando tudo que foi encontrando pelo caminho. Raios e trovões se intensificaram. Charlie amarrou o cipó na cintura de Tati e gritou para que Gambá a puxasse. Seu Guiga e dona Marita chegaram a tempo de ajudar Gambá a trazer Tati para cima. A copa de uma goiabeira cobriu Charlie, arrastando-o para a água. O pedido de socorro do menino se misturou ao barulho dos trovões. 

Seu Guiga, desesperado, acreditando que o filho se afogaria nas molhas da lagoa, desceu escorregando na direção do menino. Infelizmente não chegou a tempo de impedir que Charlie desaparecesse nas águas escuras da Lagoa Encantada.


*Trecho do romance infantojuvenil, "O tesouro perdido das terras do sem-fim", a ser lançado brevemente. Com apoio financeiro da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Ilhéus, Secretaria Especial da Cultura, Ministério do Turismo, Governo Federal, através do edital Arte Livre da Lei Aldir Blanc.

** Saiba quem é o artista/ilustrador Jô Oliveira clicando aqui.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

MEMÓRIA

Centro Social Urbano - 1976-2021. Na foto, ruínas de um dos módulos onde ocorriam as oficinas e os cursos promovidos pela entidade.


CSU*
Pawlo Cidade


Você conheceu o CSU? Você sabia que o Centro Social Urbano – CSU, foi um dos maiores centros de convivência comunitária de Ilhéus? Pois é, hoje eu vou falar dele. 

Eu tinha 8 anos de idade quando o Centro Social Urbano – CSU, foi inaugurado no bairro da Barra, em 15 de setembro de 1976. Ao redor do CSU havia apenas pés de manga, muito mato e um extenso manguezal. Depois, veio a invasão que se juntou aos primeiros moradores do lugar: Seu Eurico com dona Mocinha, Seu Vavá com dona Maria, Seu Derneval com dona Isabel, Seu Clodoaldo com dona Pilú, Seu Zumar com dona Zenilda, Seu Ermiro e dona Tomázia, Seu Getúlio e dona Marita, meus pais. Nós chegamos cinco anos depois, em 1981.

Os Centros Sociais Urbanos foram criados na Bahia, pelo ex-governador Roberto Santos, com o objetivo de regular a vida dos trabalhadores no uso de seu tempo livre com atividades voltadas para a educação, arte, esporte, inclusão digital, qualificação profissional, educação infantil, apoio a grupos de convivência, os cuidados com a saúde e criar um vínculo com a comunidade. E conseguiu. 

O CSU não caiu na Barra de paraquedas. Houve toda uma caracterização da área que reuniu todos os elementos comunitários, bares, terreiros, igrejas, escolas e a população por faixa etária. O equipamento trouxe a população para perto da instituição. As festas de São João, os campeonatos esportivos, as comemorações de fim de ano, sempre contavam com a arrumação e a participação da comunidade do entorno. Todos se sentiam pertencentes do CSU: dona Neuza, Zezé, Bala, Borges, Walmir, Barbudo, Raildo, dona Tereza, Seu João, Jason, Gentil. Muitos já se foram, mas alguns ainda são a memória viva daquele espaço de lazer e convivência. 

Houve uma época que o CSU ficou tão forte e tão conhecido que ele acabou virando nome de bairro. “Você mora onde? No CSU!” “Qual é a rua que você mora?” Eu dizia: “Rua Centro Social Urbano”. E está assim até hoje nos Correios, embora o nome da principal rua tenha sido rebatizado há dois anos de “Rua Djan Lima Silva”, em homenagem ao produtor musical “Geninho”, que morou na entrada da rua, ao lado de onde foi construída uma quadra de esportes, onde, outrora, funcionou durante muitos anos uma serraria.

Foi no CSU que eu e mais quatro companheiros fundamos o primeiro clube de correspondência da Bahia, a Friendship Marvel Brasileira. Foi lá também que aprendemos a jogar futebol com o professor Renato e o professor Fred; a treinar volley com Odilon, a dançar quadrilha junina com Sales; a aprender postura, bons modos e português instrumental com o professor Maciel. Participamos de cursos e oficinas de artesanato, de pintura em tecido, de desenho, bordado a mão, bordado à máquina, tapeçaria, arte culinária, cozinha básica, primeiros socorros, datilografia com a professora Ludmila e produção de sabão em barra.

Havia também aulas de manicure, pedicure, corte e costura, dança, música, teatro. E as crianças brincavam de baleado, pega-pega, amarelinha e estafetas com monitores de jogos e recreação. Ensaiei peças de teatro, aprendi kung fu com Edilson, pintei cenários, e fiz até curso de pedreiro com mestre Antônio, que hoje é conhecido como Raul, o profeta, que anda de bicicleta para cima e para baixo no centro da cidade.

Foi no CSU também que participamos de vários torneios esportivos, gincanas, projetos de jardinagem e horticultura. E havia ainda um trabalho de acolhimento de idosos, de menores em situação de vulnerabilidade social, apoio a gestantes e recém-nascidos e um programa de alimentação familiar, palestras sobre gravidez na adolescência, doenças sexualmente transmissíveis, direitos civis. As portas do CSU sempre foram abertas para a comunidade. Até um grupo de escoteiros, coordenado por Jessé e grupos de capoeira desenvolveram suas atividades no CSU. 


Módulo onde funcionava o posto de saúde. Foto de Eli Santos


Frequentávamos ainda a biblioteca pública comunitária, participávamos de concursos e torneios, representando Ilhéus em várias outras cidades que também tinham CSU’s, como Jaguaquara, Feira de Santana, Juazeiro, Alagoinhas, Paulo Afonso, Santo Antonio de Jesus, Valença, Vitória da Conquista, Serrinha, Senhor do Bonfim, Teixeira de Freitas, Cruz das Almas, Lauro de Freitas, Itapetinga, Guanambi, Coaraci e Caetité. 

O CSU era o melhor lugar para namorar, se divertir e, sobretudo, fazer amigos. Amigos que se foram como Dai e Jorge Motor; Liquinha e Linho; Drico, Tico e Haroldo. Amigos e amigas que fizeram parte da turma daquela rua, como Nívea, Lívia, Lizete, Diu, Eliene, Luciene, Cássia, Célia, Alda, Nai, Tina, Paulinha, Quinho, Albene, Ró, Celiene, Irene, Hamilton, Mara, Ninha, Du, David, Beto, Jorge, Jean, Marcos Cabeção, Negão, Nego Veio, Tita, Sapecado, Rubens, Ivete, e tantos outros.

Mas o governo abandonou o CSU. Ninguém ligava mais para as paredes, os telhados, portas, janelas, o piso de cada um daqueles módulos. O CSU virou apenas um cabide de emprego. A estrutura foi se deteriorando, caindo, morrendo. A única unidade escolar com jardim de infância da Rede Estadual da época foi desativada anos depois, os cursos foram extintos, o campo de futebol abandonado e a quadra de esportes depredada. Lembro ainda que eu e Quinho pintamos a quadra, durante uma reforma. Éramos dois adolescentes tirados a letristas, que sabiam desenhar, e o engenheiro encarregado nos contratou. Ganhamos um bom dinheiro e nos sentimos orgulhosos por ter contribuído com aquele espaço que era nosso também.

O CSU viveu, entre apogeu e ruína, 44 anos. Agora, não existe mais. Em seu lugar será construído a Escola de Tempo Integral, um projeto arrojado do governo do estado que promete ser maior e melhor do que foi o CSU um dia. Espero que a placa fundamental traga um pouco desta memória e ao morador mais velho da comunidade lhe deem a honra de inaugurar a escola . Afinal, aquele foi um lugar que formou cidadãos, homens de caráter e pessoas que acreditavam em dias melhores para Ilhéus.

* Publicado originalmente no site e no programa de rádio O Tabueiro. Também pode ser lido este e outros artigos neste endereço: https://www.otabuleiro.com.br/column/csu 

PRÉ-VENDA DE "A ÚLTIMA FLOR JUMA" EM FORMATO FÍSICO

O leitor pediu e aqui está! A versão impressa de A ÚLTIMA FLOR JUMA.  A última flor juma narra a saga de um pai e três filhas vivendo a bele...