quinta-feira, 17 de março de 2016

O PROTAGONISMO DA CULTURA E A VISÃO ESTRÁBICA DO GESTOR CULTURAL

“O melhor é não juntar pensamentos divergentes,
mas, criar unanimidades burras”.
Pawlo Cidade¹ 

Convergente, divergente e vertical
Outro dia ouvi de um amigo que era melhor falar por metáforas porque evita dentes quebrados e dor de cabeça na inteireza. Isto porque as pessoas não estão preparadas para ouvir críticas ou sugestões sobre o que vem fazendo na vida profissional.  O fato é que, sem tergiversar, vou direto ao ponto: os governos municipais não se dão conta que colocam na pasta da cultura pessoas com visão estrábica. E, tal qual o estrabismo – sem nenhuma menção pejorativa nem preconceituosa para quem possui este problema muitas vezes hereditário – podemos afirmar que a visão gerencial no campo cultural, de quem está nesta condição, é classificada de três maneiras:
1.      Convergente – quando o gestor não consegue enxergar que o Conselho de Cultura pode ser um aliado poderoso na sua gestão. Deste modo, todas as suas atitudes são atitudes voltadas para dentro de si mesmo;  
2.      Divergente – quando o gestor radicaliza suas decisões e se fecha no seu protagonismo cultural onde só ele é capaz de promover uma determinada ação e
3.      Vertical - quando o gestor planeja sem ouvir as pessoas mais interessadas no Plano de Ação do órgão máximo da cultura: os artistas.

Política de Balcão e Pires na Mão

Quase sempre este tipo de comportamento ocorre quando o gestor traz enraizado em sua experiência duas práticas: a primeira é a “política de balcão”, do favorecimento, do clientelismo, do paternalismo, dos critérios obscuros e das motivações semelhantes como bem diagnostica TURINO (2009): “Um hábito que tanto infelicitou, e infelicita, nossa prática cultural”. Xô! “Quebrem o balcão!” – Diziam os cineastas do Estado de Alagoas para o governo alagoano que até 2013 era o único estado nordestino que não possuía uma política cultural de fomento.
A segunda é a prática do “pires na mão”, cuja origem se diz que surgiu com os prefeitos que cobram dia-após-dia de seus parlamentares emendas para resolver as cobranças da população. O ato em si de cobrar não conceitua a expressão “pires na mão,” porém, o vai-e-vem à Brasília, a exigência de documentação para liberar a emenda, a modelagem obrigatória de projetos, estar em dia com o Cadastro Único para Exigências de Transferências Voluntárias – CAUC - transforma o prefeito num pedinte de primeira grandeza. Assista ao vídeo “O calvário dos prefeitos para conseguir recursos – A história do pires na mão”, no YouTube, e verifique.
São estas práticas do gestor cultural que reduz a Cultura à cereja do bolo. Ou seja, a Cultura passa a ser vista aqui como a prima pobre, a pasta coitada, a que sempre é relegada a segundo, terceiro ou décimo plano.  O gestor traz consigo a marca da esfera pedinte, amadora, chata, que é lembrada apenas quando o governo inaugura alguma coisa.
A situação complica quando estas três formas são simultâneas e o gestor, perdido, nunca tem certeza de nada e está sempre ajustando sua prática à prática do outro. Torna-se um camaleão sem cor, não sabe fundir ideias e propostas, desconhece o conceito de convergência e acredita que o melhor é não juntar pensamentos divergentes, mas, criar unanimidades burras.

Para que haja protagonismo cultural

Para que a Cultura assuma de vez seu protagonismo no campo das políticas públicas e na gestão municipal e deixe de “ser vista como acessória no conjunto das políticas governamentais” (BOTELHO, 2001) é preciso considerar alguns aspectos:
a) O cargo deve ser técnico. Além de técnico o gestor precisa ser político;
b) Deve possuir qualificação e experiência - condições indispensáveis;
c) Sem bajulação ou lisonjeio gozar do apoio do prefeito;
d) Precisa convencer os companheiros de governo que a Cultura é transversal. Para isso terá que saber articular as demais esferas do governo como um programa conjunto;
e) Seu plano de ações deve prever atividades que estimulem o pertencimento junto à comunidade. Porém, isso só será possível se ele estiver em constante diálogo com ela;
f) Tem que definir logo no início do seu mandato qual o conceito de Cultura que irá trabalhar;
g) Mapear toda a comunidade cultural. Na sua sala tem um mapa onde ele pode traçar sua ação, metas e objetivos já alcançados, identificando grupos, instituições, coletivos no Município;
h) Quando pensar em programas e projetos que democratizem o acesso aos bens culturais precisa primeiro pensar na democracia cultural. Não adianta levar orquestra sinfônica para a comunidade se a comunidade nem sequer foi ouvida se queria ver uma orquestra sinfônica;
i) Esquecer de vez a função de produtora. Um órgão de cultura não pode produzir eventos de todos os gostos e todos os tipos. Precisa fomentar, criar oportunidades e condições para que os verdadeiros promotores de eventos desenvolvam seus projetos;
j) No seu planejamento estratégico não pode faltar programas de formação e capacitação dos artistas e técnicos. Deve criar objetivos e metas que possam ser alcançados. Não pode trabalhar de forma empírica e ao sabor do vento. Do vento do orçamento, do aval do prefeito, da boa vontade da secretaria da fazenda. Se há planejamento financeiro, há disponibilidade orçamentária. Os imprevistos podem ser sanados com os parceiros locais. E, os parceiros não podem ser apoiadores de ocasião, nem amigos afins, mas conectores que acreditam no processo de transformação através da Cultura;
l) Seu principal foco deve ser a reterritorialização. “Mesmo no âmbito da cultura global, surgem espaços destinados aos produtos “típicos”. A reterritorialização contemporânea, com a emergência cultural das cidades e regiões, tem sido a contrapartida da globalização cultural.  Assim, o panorama atual aponta para um desigual e combinado processo de glocalização” (RUBIM, 2006). Sem valorização do local não consegue ganhar apoio da comunidade cultural. Fica isolado, desacreditado e dá a impressão de que não faz nada. E quando faz, passa despercebido;
m) Suas estratégias devem envolver o Conselho Municipal de Cultura, a captação de recursos para o Fundo Municipal de Cultura e selar de vez o Sistema Municipal de Cultura;
n) Deve promover a participação efetiva dos artistas locais em grandes datas comemorativas, a exemplo do Carnaval, São João, Réveillon, aniversário da Cidade, dando-lhes condições dignas com camarins próprios, cachês justos e tratamento semelhante ou melhor do que os artistas visitantes.
Ora, uma ação de governo que se pretenda progressista, ou transformadora, tem a Cultura como prioridade, assinala TURINO (2009). Não dá para agir assim se os gestores culturais continuarem com esta visão estrábica e, também, míope! O que requer aí um outro artigo para esclarecer – e convencer – de que um verdadeiro gestor da cultura tem que ter olho de tandera. Sua capacidade de enxergar tem que ir além do que está no seu campo de visão.   

Sem alinhamento não há convergência

Se ele consegue municipalizar a Cultura e ampliar o orçamento vira referência. É copiado, lembrado e apontado como figura ímpar, e seu nome estará nos anais da história. Se não conseguir, e nem sequer pensar assim, cada olho – assim como no estrabismo – irá formar uma imagem diferente do objeto. Afinal, sem alinhamento, não há convergência. É claro que neste cenário aparentemente caótico existem bons exemplos que se espalham pelo país, como o Município de Goiana, em Pernambuco, onde são investidos 2% do orçamento anual em Cultura. “Estamos escrevendo uma nova página na rica e singular história de Goiana. Somos hoje a cidade que, além de possuir um tecido cultural diversificado, nos preocupamos em fomentar e garantir subsídios para que o fazer cultural seja valorizado”, disse o prefeito Fred Gadelha, em entrevista na página oficial da prefeitura da cidade.
Imagine um Conselho de Cultura que não compreende seu papel e sua função. Agora, some-se a isso um gestor cultural despreparado e divergente. Qual o resultado? Uma política cultural inexistente e um sistema inoperante.
Todos estes aspectos aqui elencados devem ser considerados de forma conjunta e nunca isoladamente. Senão, sua administração recairá em uma ou mais classificações estrábicas. Porém, se o seu planejamento excluir qualquer forma imediatista, estará priorizando escolhas de médio e longo prazos, dando a todos a possibilidade de escolhas e contemplando as várias dimensões da cultura sem nenhum preconceito ou dirigismo: “O Estado tem de estar a serviço da sociedade e nunca o contrário” (TURINO 2009). Segundo ele para que a administração pública cresça é preciso “assumir uma postura mais humilde e menos impositiva quanto à proposição e execução de programas”. É desta maneira que Estados e Municípios podem se tornar articuladores, jamais produtores.
Considerações finais
Afirmar que: os governos municipais não se dão conta que colocam na pasta da cultura pessoas com visão estrábica não faz desta sentença uma regra. Afinal, toda regra tem exceção. Melhor, exceções. E mais, garantir o investimento de 1% - como prevê a PEC 421 - ou 2% como deseja o Município de Goiana para o fomento, não são suficientes para a construção de uma política cultural de descentralização de recursos. Há de se considerar as forças artístico-culturais, organizadas, que tentarão cooptar o maior número possível de investimentos para suas áreas. E, se o gestor não tiver a capacidade de saber “dividir o bolo”, controlar os egos, fortalecer as tradições, impor limites e provocar intervenções, dificilmente teremos ações estruturantes, projetos sustentáveis e programas de fortalecimento para a diversidade cultural.
E, quando as forças organizadas se deslocam como tratores contra os gestores estrábicos, eles, acuados, sem planejamento, partem para uma política de eventos – imediatista - na contramão da política cultural, formando “um conjunto de programas isolados – que não configuram um sistema, não se ligam necessariamente a programas anteriores nem lançam pontes necessárias para programas futuros – constituídos por eventos soltos uns em relação aos outros” (COELHO, 2004).
O gestor cultural precisa pensar localmente, agir globalmente e se fortalecer coletivamente. O desejo de construir em conjunto, de unir forças não o torna incapaz na condução de seus trabalhos. Pelo contrário, demonstra liderança, legitimidade, segurança, competência e capacidade de congregar em um mesmo ambiente, pensamentos divergentes, ações estruturantes e relações horizontais.

[1] Pawlo Cidade é escritor, produtor e gestor cultural. Autor da cartilha “Como Transformar a Cultura em um bom negócio – 17 perguntas para você se torna um empreendedor cultural”, Editora A5, Itabuna, Bahia, 2014.


REFERÊNCIA
TURINO, Célio. Uma gestão cultural transformadora, 2009. Disponível em:  http://www.fmauriciograbois.org.br/cultura/index.php?option=com_content&view=article&id=10:gestao Acesso em: 21 de nov. 2015.
RUBIM, A. A. C. Políticas Culturais entre o possível e o impossível. In: Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 2., 2006. Salvador-Bahia.
BOTELHO, Isaura. Dimensões da cultura e políticas públicas, 2001. Disponível em: http://www.guiacultural.unicamp.br/sites/default/files/botelho_i_dimensoes_da_cultura_e_politicas_publicas.pdf Acesso em 21 de nov. 2015.
COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: Editora Iluminuras, 2004. 300 p.


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