Isaque estava na fase final. Do nariz escorria um sangue pastoso e a pele estava marcada com pústulas.
Uma dor súbita atingiu-lhe o estômago. Ele gritou. Jacó se aproximou, pronto
para ampará-lo, como fazia quando criança. Isaque estendeu uma das mãos, não
permitiu que ele se aproximasse. Mas, Isaque era seu filho, seu único filho. O
filho que Deus lhe dera na velhice, o filho que Deus agora requeria. Assim como
Abraão, ele teria que sacrificá-lo. Não havia escolha, não havia outra saída.
Jacó estendeu a arma mais uma vez, apontou para a cabeça do filho. Os poucos
raios de sol que ousavam penetrar pelas frestas das tábuas, tentavam
timidamente iluminar aquele pequeno ambiente. As pernas de Jacó fraquejaram.
Ele tentou inutilmente manter-se de pé. Porém, a gravidade o puxava. As mãos
mal podiam segurar a arma. As lágrimas embaçavam os olhos.
Jacó,
como Abraão, julgava que Deus era poderoso assaz para até dos mortos ressuscitarem
Isaque. Apesar da fé, a dúvida o assolava. A dúvida, que se transformava nos
segundos que o separavam de uma fatídica decisão. “Como posso matar meu próprio
filho! Isso não é justo!” Vociferou. Estava sendo provado. Não sabia se era uma
afirmação ou uma pergunta. Seu unigênito era agora oferecido. Tentou lembrar-se
das promessas que um dia Deus lhe fizera. Não conseguiu. Recobrou-se. Viu a
imagem de Isaque, ajoelhado, clamando pelo fim. Se Deus enviou seu anjo e
impediu Abraão de sacrificar o filho, faria o mesmo com seu Isaque, prestes a
morrer pelas suas mãos.
“Meu
filho traz consigo Abadom”. Meditou.
E ele não se referia unicamente ao vírus. Mas àquele predito no Livro da Revelação, após a quinta
trombeta do anjo onde o profeta dizia ter visto uma estrela que do céu caíra sobre a terra; e foi-lhe dada à chave do poço do
abismo. E abriu o poço do abismo, e subiu fumaça do poço, como fumaça de uma
grande fornalha; e com a fumaça do poço escureceram-se o sol e o ar. Da fumaça saíram gafanhotos sobre a terra; e
foi-lhes dado poder, como o que têm os escorpiões da terra. Foi-lhes dito que
não fizessem dano à erva da terra, nem a verdura alguma, nem a árvore alguma,
mas somente aos homens que não têm na fronte o selo de Deus. Jacó estava
falando de Satanás.
Ele
cerrou os olhos. E como numa tela de cinema, viu a infância inteirinha de
Isaque sobrevoar Telaviv; viu ainda sua adolescência, a mudança para Jerusalém,
o atentado que o deixou surdo do ouvido esquerdo, a morte de sua mulher. E mais
uma vez foi invadido por uma indagação que comprimiu seu coração até faltar-lhe
o ar: Porque deveria ser ele o carrasco de sua própria descendência? A pergunta
surgiu como um sinal de perda. Uma falta, indubitável, de fé. Pediu
misericórdia. Abriu os olhos. Isaque, de braços estendidos, balbuciando uma
prece, estremeceu. Pai e filho se entreolharam por uma fração de segundos. Nos
olhos de Isaque o desenho inexprimível de um adeus; nos olhos de Jacó, um pedido lânguido de perdão. O silêncio daquele abrigo foi
entrecortado pelo disparo que ecoou de uma ponta a outra do bairro antigo de Jaffa.
(Trecho
de um romance que eu nunca terminei sob o título de “Isaque.”)
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