quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

A HORA DO CONTO

CHEIRO DE LIVRO NOVO
Pawlo Cidade

Imagem da internet

"Sua casa não cheirava a fumaça de fogão de lenha, nem a terra batida, como a casa de dona Perolina; muito menos a gardênias com aquele aroma doce e intenso que sempre aflorava nos fins de tarde na casa de dona Maria José. Sequer lembrava a fragrância forte da dama-da-noite, as flores do jardim de dona Antonieta. A casa de Emílio Laureano tinha um cheiro diferente. Um cheiro de livro novo".


“Ao sentir o cheiro de um livro 
apenas e se puder devore-o...”
Oscar de Jesus Klemz



OS MORADORES MAIS VELHOS do distrito diziam que ele tinha sido escritor quando jovem. Mas ninguém nunca encontrou sequer um exemplar de seus vinte e três livros publicados. Para os mais moços, o velho Emílio Laureano, primo-irmão do médico Napoleão Laureano, morto em 31 de maio de 1951, que dava nome a principal rua do distrito, não passava de um idoso, contador de causos, que saía todas as tardes para ver a passagem da cobra gigante no Rio Almada. 
Dona Antonieta, avó de Robertinho, saiu com uma conversa que Seu Emílio possuía uma estreita ligação com a serpente. Ela mesma jurou ter visto, numa tarde de 28 de dezembro, Seu Emílio acariciando a cabeça da víbora às margens do rio. Muitos disseram que dona Antonieta já não governava muito bem seus pensamentos, porém, ninguém duvidava da existência da cobra, já que bois, cavalos e cabras de vez em quando sumiam da noite para o dia, sem deixar vestígios. 
No entanto, Lili Costureira, tia de Robertinho, afirmava que era preferível que a serpente comesse os animais que as crianças do povoado. Nada mais aterrador que ver um dos seus filhos ser engolido vivo pela cobra.     
Na casa de Emílio não havia sequer uma estante. Muito menos um livro. Era uma casa pequena de um quarto, com uma sala-cozinha. Mal dava para caminhar no espaço. No centro da sala, uma mesa pequena com dois jarros, sem flores, e um buda esculpido em madeira, curvado sobre os joelhos em oração; uma espécie de abajur em forma de anjo estava entre dois porta copos de porcelana com detalhes turcos; um porta treco e um jarrinho com um pequeno pé de arruda; ao lado, encostado à parede, uma mesa de plástico, com um pequeno presépio de barro, iluminado com lâmpadas pequenas que piscavam ao lado de uma árvore de natal feita de um pequeno galho seco, coberta de algodão com bolas de vidro antigas, bem idênticas àquelas dos anos 50; dois presentes pequenos bem embrulhados, uma bola de cristal, com a imagem de uma vila coberta de neve.
Em frente à mesinha do centro estava a TV, sobre um tronco de madeira, com uma tábua plana envernizada, bem aparelhada, segurando o aparelho. Mais abaixo, dois outros suportes, um a direita e outro a esquerda, também planos, davam destaque a miniaturas de animais de madeira: um elefante, virado na direção da parede, um hipopótamo e uma onça.
Do lado esquerdo da sala se localizava a cozinha. As panelas estavam penduradas, harmonicamente, sobre uma tábua lisa que servia de estante para apoiar os condimentos e os grãos, bem como algumas vasilhas de outros alimentos como café, açúcar e leite. A pia, comprida, tomava quase toda a parede e estava coberta de copos, garrafas, escorredor de pratos e outras peças de cozinha. 
A pia ficava entre a geladeira e o fogão de quatro bocas. Antes da pia, a mesa de jantar dividia um cômodo do outro. Sobre a mesa de jaqueira, pesada, com seis cadeiras, havia guardanapos, pratos vazios e talheres bem sobrepostos como que estivessem sempre à espera de convidados. A sala-cozinha era bem iluminada pela luz que entrava pela janela ao lado da pia e a porta à direita da TV. 
A porta principal que dava acesso à rua, ficava de frente para a mesa de centro. Havia ainda uma passagem do lado esquerdo da TV que dava acesso ao quarto e ao banheiro. Do lado do banheiro, uma porta pequena, trancada por um cadeado, onde diziam os mais velhos, sobretudo dona Antonieta e Manequinha, que ali estavam escondidos os 23 livros que ele escreveu.
Nos quatro cantos da sala-cozinha, pendurados nas paredes, havia toda sorte de artefatos: pratos turcos, pintados a mão, semelhantes aos porta-copos, presente do escritor Jorge Amado quando o visitou no verão de 1973; entalhes de madeira que lembravam carrancas indígenas que não davam para definir se se tratavam de rostos humanos ou feições de animais, embora ele mesmo dissera que elas representavam a cara de cavalos; um relógio antigo, com um pêndulo comprido que ainda marcava as horas; dois quadros:  o primeiro representando um mapa mundial antigo, datado de 1633, e o segundo, meio torto, trazia o desenho das capitanias hereditárias, com destaque para a Capitania de São Jorge dos Ilhéus. Uma foto pintada de um rosto de uma mulher, de cabelos curtos, com um belo colar de pérolas e um vestido preto, olhando ligeiramente para a direita, que todos diziam ser sua esposa, se destacava no centro da parede lateral. Assim era a sala-cozinha de Emílio Laureano.

SEU EMÍLIO CRIAVA GALINHAS NO QUINTAL. Costumava alimentá-las duas vezes ao dia. Conhecia cada uma das aves pelo nome. As mais próximas eram Judith e Carmelita, enormes galinhas poedeiras que chegavam no fim da postura à extraordinária marca de sessenta ovos. Carmelita, a mais velha das aves, estava com Emílio há vinte anos. Outro fato inacreditável já que estas aves vivem em média, sete anos. Se um ano de uma galinha equivale a dezoito anos de um ser humano basta multiplicar para se ter uma ideia da incrível idade de Carmelita. 
Judith e Carmelita eram também as primeiras a dar o alerta quando aparecia alguma ousada raposa ou uma jiboia faminta. Um dia, Ana Clara, Maria Raimunda e Firmina, três galinhas mestiças de pouco mais de oito meses de idade, desapareceram. As três sumiram de uma vez. 
Seu Emílio chamou Antônio, o cachorro do vizinho, seu principal companheiro de caminhada quando ele ia visitar a cobra gigante do rio. Antônio era um vira-lata inteligente, apesar da idade. Seu faro ainda conseguia sentir o cheiro de raposa há duas léguas de distância. Eles revistaram o quintal de cima a baixo, ponto a ponto, cerca a cerca. Nenhum sinal de Ana Clara, Maria Raimunda ou Firmina. Não havia trilha de sangue, pegadas, penas soltas ou qualquer sinal de alguma raposa sem-vergonha que tivesse invadido o quintal e sequestrado as filhas de Judith. O desaparecimento das aves deixou Emílio e Antônio intrigados.
Duas semanas depois foi a vez de Judith. A velha poedeira também sumiu. Emílio enlouqueceu. Quis a qualquer custo pegar aquele ladrão de galinhas. “Se não é uma raposa, deve ser algum vagabundo!” Pensou. No entanto, não havia pegadas nem tampouco rastros no quintal. Muito menos sinal de invasão. O jeito era armar uma tocaia para pegar o bandido no flagrante. E foi o que ele fez.
Emílio pegou a espingarda, uma velha carabina Chapinaque herdou de seu pai, se camuflou todo de penas e se escondeu no galinheiro durante três noites. Mas para frustração de Emílio o ladrão não apareceu. O gatuno já devia desconfiar que alguma coisa o aguardava. 
Entretanto, na quinta noite, por volta das duas horas da madrugada, Emílio despertou com um barulho estranho no galinheiro. Pegou a arma e, pausadamente, pé ante pé, foi ao encontro do larápio. O meliante saía do galinheiro com Carmelita, já desfalecida e as asas arriadas, entre as mandíbulas. O animal esbugalhou os olhos ao ser surpreendido pelo velho. A sua surpresa só não foi maior que a de Emílio ao descobrir que Antônio, seu companheiro vespertino de caminhadas, era o ladrão. 
- E eu que pensava que você fosse meu melhor amigo! – Lamentou. Na sequência, puxou o gatilho e atirou para o alto. Não teve coragem de atirar no velho vira-lata. Antônio chorou feito bezerro desmamado. 
Até hoje, próximo às ruínas do engenho, do outro lado do rio, onde o cachorro foi se esconder após o tiro, quando o vento sopra forte na lua crescente se ouve o choro do animal, arrependido e envergonhado.  Dizem que ele morreu deprimido por não ter sido perdoado pelo velho amigo.


AFINAL, POR QUE SE DIZIA QUE AQUELE VELHO que criava galinhas como se fossem suas filhas e conversava com serpentes, já beirando os noventa anos de idade, era escritor? Seria sua caligrafia perfeita tal qual estas que a gente aprende na escola? As histórias e os causos que sabia de cor e sempre contava aos amigos e as crianças que o visitavam? Ou ao fato de dar nome as mais de trezentas galinhas e ter uma memória invejável? E quem foi que disse mesmo que ele publicou, quando jovem, vinte e três livros? Que livros eram esses? Quais os gêneros literários que escrevia? Romance? Infantil? Poema? Conto? Se Emílio era mesmo escritor, por que não tinha o hábito de escrever? Por que não lia nada? Que tipo de escritor era Emílio que não fazia questão de mostrar sua obra? Por que não havia sequer um livro, à vista, em sua casa? 
Todavia, havia uma coisa que deixava os moradores de Castelo Novo encafifados. O pequeno povoado que distava trinta e cinco quilômetros da antiga Capitania de São Jorge dos Ilhéus, onde há mais de trezentos anos, Bartolomeu Luiz de Espinha, um senhor de engenho, tentou fundar uma aldeia de índios, se acostumara com o mistério do homem que não escrevia, mas sua casa cheirava a livro novo, e todos acreditavam que ele havia sido um escritor.
Sua casa não cheirava a fumaça de fogão de lenha, nem a terra batida, como a casa de dona Perolina; muito menos a gardênias com aquele aroma doce e intenso que sempre aflorava nos fins de tarde na casa de dona Maria José. Sequer lembrava a fragrância forte da dama-da-noite, as flores do jardim de dona Antonieta. A casa de Emílio Laureano tinha um cheiro diferente. Um cheiro de livro novo. 
Da porta de entrada até o banheiro, o cheiro exalava dos quatro cantos do lugar. Até o próprio Emílio quando se banhava cheirava a livro novo. Os vizinhos perguntavam que perfume era aquele que despertava neles o desejo de ler um livro. Eles não sabiam explicar. Mas toda vez que se aproximavam de Emílio, as pessoas se enchiam de memórias, de boas recordações, de histórias, de vontade de ler um bom livro. Até os que não sabiam ler, como Augustino, Maricléia e Arlene pediam a Emílio que lhes contasse uma história.
Quando as crianças iam mal na escola, as professoras descobriram que visitar à casa de Seu Emílio despertavam-lhes o desejo de novos conhecimentos, do prazer de ler, ouvir e contar histórias. Alunos e professores saiam de lá com vontade de devorar os livros escolares, sobretudo os paradidáticos. O velho se divertia com as crianças, deixava-as tocar nos objetos sobre as mesas, fazer perguntas, brincar no quintal, caminhar pelos cômodos, com exceção do quarto e da despensa que sempre ficavam fechados por cadeados. 
Ele dizia que havia uma passagem secreta que levava ao rio Almada até o bambuzal onde morava o Negro D’água. O preto careca com mãos e pés de pato costumava virar as canoas dos pescadores do povoado até a Lagoa Encantada quando lhe negavam um peixe. Ele sempre aparecia gargalhando no rio rasgando redes, quebrando anzóis e dando sustos nas pessoas.
Seu Emílio contava às crianças que o Negro D’água era uma mistura de homem negro, alto e forte, com um sapo. Seu corpo era coberto de escamas como de um peixe. Os mais corajosos não acreditavam na lenda. Mas quando ouviam a gargalhada que vinha do quarto do velho saiam correndo. Nem a cobra gigante assustava tanto quanto o Negro D’água.
As crianças perguntavam se as histórias que ele contava faziam parte dos livros que ele havia escrito na juventude. Mas ele, pacientemente, afirmava nunca ter escrito livro algum. Repetia diversas vezes que aquela fantasia de escritor fora uma invenção de dona Antonieta e de Manequinha, morador da Rua Filogomes Alves de Carvalho, na entrada do povoado. 
Entrementes, Manequinha chegou a espalhar que Emílio escondia uma máquina de escrever tão antiga quanto ele na despensa que só vivia no cadeado, ao lado do banheiro. Ele mesmo já ouviu a batida das teclas na madrugada. Mas só nas madrugadas de lua crescente. Era quando, segundo o pescador, Emílio Laureano estava inspirado para criar suas histórias. 

UM DIA, UMA PROFESSORA NOVA CHEGOU AO POVOADO. Ela ficou encantada com a história do homem que cheirava a livro novo, conversava com cobras e galinhas e era amigo do Negro D’Água. Queria, a todo custo, conhecê-lo. Na primeira chance que teve, pegou dois alunos e foi com eles a casa de Emílio Laureano. O velho rastelava as folhas secas no quintal que começavam a cair no outono. Ele os recebeu com alegria. Foi logo contando um caso antes mesmo que eles pudessem perguntar alguma coisa. Aquela altura, o cheiro de livro novo dominava as narinas da professora e dos alunos. Ela estava embasbacada.
- De onde vem esse cheiro? Perguntou ela curiosa e em seguida acrescentou: O senhor fabrica este cheiro de livro novo? 
Seu Emílio sorriu graciosamente, depois virou-se para ela e disse:
- O cheiro está onde você quer que ele esteja. 
- Como assim? Indagou ela mais curiosa ainda. Neste momento, duas galinhas invadiram a sala, Marlúcia e Francisca. Ele as expulsou pelos nomes. Os meninos que acompanhavam a professora ficaram boquiabertos quando as aves obedeceram sem fazer alarde.
- O senhor fala mesmo com as galinhas! Exclamou o mais jovem.
- Com as galinhas, as cobras, os cachorros, os pássaros e o rio. – Confessou esboçando um largo sorriso. A única coisa que eu não faço é escrever livros. Nem sei explicar por que vocês sentem um cheiro que eu não sinto. Vocês estão vendo algum livro nesta casa? Eles aquiesceram. O mais velho quis saber.  
- Quer dizer que o senhor não sente cheiro? Questionou ainda com espanto.
- Não sinto o cheio de livro novo, mas, todos os outros cheiros sim. Inclusive o do seu suor, respondeu apontando para o garoto. Ele riu. As crianças também. A professora vasculhava toda a casa com os olhos, tentando encontrar alguma coisa que pudesse surpreender o velho. Mas não conseguiu. Ela saiu da casa num misto de encantamento e frustração. Encantamento porque aquele cheiro singular da casa de Emílio a acompanhou até a escola e a fez devorar um romance de mais de quatrocentas páginas em menos de quatro horas; e, frustração, porque não acreditou que aquele velho não tenha sido um escritor.
- Professora, todo escritor cheira a livro novo? Perguntou o mais velho.
A professora não soube responder. 
Nem morador algum conseguiu responder a estes questionamentos. 

POR QUASE CINQUENTA ANOS a casa de Emílio Laureano exalou o perfume de livro novo. Enquanto os visitantes e os moradores eram despertados para a leitura com aquele aroma maravilhoso, Emílio se divertia criando e batizando suas galinhas. Tomava seu banho vespertino nas corredeiras do Funil quando visitava a cobra gigante; contava seus casos e histórias a quem estivesse pronto a ouvi-los; imitava a gargalhada do Negro D’água como nenhum outro; e gostava de estalar os dedos na lua crescente até Seu Manequinha, do outro lado do povoado, comparar o som que decorria de suas mãos a de uma antiga máquina de escrever.


FIM

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